29.8.12

Alma de chumbo

ANDREI BASTOS

A queda não termina nunca e os rostos apavorados nas janelas e abaixo, na rua, se fixam como retratos imutáveis que se sucedem diante dos meus olhos. Minha vida inteira durou menos do que está durando meu salto para a morte do décimo andar de um prédio de apartamentos em Copacabana.

Enquanto o vento passa veloz pelo meu rosto, agitando meus cabelos e zunindo nos meus ouvidos, como estátua parada no ar eu revivo em detalhes todas as emoções, as dores, os sentimentos e os medos que agitaram minha alma, agora pesada como chumbo. Por outro lado, e contraditoriamente, é a leveza da memória, mesmo infinita, que parece me sustentar no ar, e no tempo, a despeito das muitas lembranças que marcam meu corpo igual às cicatrizes das torturas a que fui submetido como prisioneiro da ditadura nos anos 1970.

Desde os tempos recém-saídos da adolescência, quando produzia panfletos ou reproduzia textos revolucionários num mimeógrafo a álcool no quarto da minha namorada, sempre sonhei com um mundo melhor. Eu fazia parte de um grupo de jovens sonhadores revolucionários e, contrariando minha formação burguesa, coloquei minha existência a serviço do bem comum e da transformação do mundo.

Minha dedicação me levou a doar minha herança para a causa e a me preparar para a luta como um guerreiro, disposto a matar e morrer sem temor ou vacilo. Aliando minha sofisticada formação intelectual a um rigoroso treinamento militar, ocupei posições de destaque e comando e realizei inúmeros planejamentos, estudos teóricos e ações armadas. Sobrevivi tanto à tortura de ter matado como à que me infligiram meus inimigos e continuei tentando viver com dignidade.

Dez anos de pastor

Depois de cumprir dez anos de uma pena de prisão perpétua, quando o tempo passou tão devagar e densamente quanto agora, fui anistiado e saí para viver o amor com a mulher que me acolheu, ainda prisioneiro, em seu coração, a minha Ana. O tempo que tirei de cadeia foi suficiente para perscrutar os mistérios da vida e constatei por mim mesmo que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.

Coerente com minhas novas crenças, construí uma nova vida, tanto no campo da espiritualidade, que passei a conhecer na prisão, como nas relações com a sociedade, acreditando na possibilidade democrática.

É verdade que sempre fiz severas restrições à realidade pós-ditadura, identificando problemas, falhas e mesmo farsas armadas para enganar o povo, mas justifiquei tudo com a ideia de que éramos inexperientes em matéria de democracia. Concluí que fazia sentido a história de que a direita, para acabar com a esquerda, tinha inventado um partido e um líder popular, alinhados com uma moderna onda de contestação no mundo e, obviamente, desalinhados com a antiga ordem contestatória, ultrapassada e antiquada, mas considerei que isso fazia parte de um jogo de poder legítimo, mesmo que tais eventos tivessem sido orquestrados pela CIA.

Falando das flores

Com pesar, aceitei a impossibilidade de escaparmos da influência do Grande Irmão, e de seus mil olhos que nos espreitam, e continuei “caminhando e cantando”. Não fiz política partidária porque meu estômago de revolucionário burguês intelectualizado sempre embrulhou com o cheiro de merda e eu não suportaria meter a mão na dita cuja. Apesar disso, coloquei meus talentos a serviço de quem considerava honesto e também continuei “seguindo a canção, braços dados ou não”.

Com o esgotamento do modelo democrático vigente, ao menos para mim, acabei me afastando de vez do caldeirão fedorento e fui cuidar da horta do meu sítio, no interior do estado. Com minha companheira ao lado e filhos e netos nos visitando de vez em quando, parecia que minha velhice me distanciaria definitivamente do meu passado de chumbo. Mas fui assombrado por este passado há duas semanas e voltei a viver um pesadelo.

O “dossiê”

Depois da chuva que caiu durante a noite, as folhas e flores estavam cobertas de gotículas que brilhavam ao sol e, como em todos os dias desde que subimos a serra, na penúltima terça-feira comemos frutas, pães e tomamos suco das nossas próprias laranjas. O jovem funcionário dos Correios da cidade próxima chegou algumas horas depois com um pacote relativamente grande e pesado e, sem descer da motocicleta, disse que era encomenda para mim. Fiz com que apeasse e aceitasse o cafezinho que oferecemos e ele se foi agradecendo.

A encomenda estava realmente endereçada a mim e a remetente era uma antiga companheira da luta armada, com endereço em Copacabana. Isso me perturbou, pois não sabíamos um do outro há muito tempo e eu estava certo de que ela não sabia da existência do sítio e muito menos do seu endereço. Mas, como “existem mais coisas entre o céu e a terra…”, segui em frente e abri o pacote. Ao desfazer o embrulho, com cuidado para não rasgar a parte que continha o endereço da remetente, deparei com um amarrado de pastas de arquivo que tinha um grande quadrado de papel colado em cima. Nele estava escrito “Dossiê Luta Armada”. Fiquei mais perturbado ainda, mas também muito curioso em relação àquele “dossiê”.

Levei a papelada e minha curiosidade para a cadeira de balanço da varanda e comecei a folhear o conteúdo das pastas. O que de início pensei que seria uma leitura sem muitas novidades, aos poucos se transformou numa prisão de amarras invisíveis que não permitiam que eu me levantasse ou desviasse os olhos dos papéis. Cada folha virada me provocava um sobressalto e, ao mesmo tempo, eu tinha medo e me sentia impelido pelo que iria encontrar.

Resumidamente, o “Dossiê Luta Armada” era uma coleção de documentos dos órgãos de repressão da ditadura, das mais variadas procedências, composta de relatórios, ordens de serviço, textos de orientação, manuais de procedimentos etc. etc., todos com datas, nomes ou codinomes, carimbados como reservados ou secretos. Só que ali estava contada a história por trás da história, com a revelação de que as organizações da luta armada foram mais infiltradas do que se supunha e que a própria luta armada tinha sido uma farsa montada para justificar o endurecimento do regime e a consolidação da hegemonia do Grande Irmão no continente.

As revelações de que um dos homens de confiança de um dos maiores líderes da chamada esquerda revolucionária era agente da CIA e a de que outro líder dessa esquerda era, ele próprio, agente da mesma organização, tendo sido assassinado como queima de arquivo, estavam intercaladas por inúmeras outras, que deixavam imune quase que apenas o pequeno e último grupo do qual fiz parte, certamente pela surpreendente juventude e independência. Mas, quando este grupo chegou perto do comando das ações, foi desbaratado, e ali, nos documentos do “Dossiê Luta Armada”, estava contado que um dos comandantes que se ligaram a ele era o tal agente da CIA.

Atordoado com tais revelações, achei que não poderia encontrar mais nada surpreendente, pois com a identificação de antigo líder estudantil que fizera treinamento de guerrilha em Cuba como agente duplo e a afirmação de um general de que o militar cubano que treinava os militantes também era da CIA, nada mais me impressionaria. Infelizmente, lá pela oitava pasta encontrei o que jamais poderia imaginar e senti como uma punhalada no peito. Um frio intenso tomou meu corpo e meus olhos pararam fixos no horizonte.

“Carmen”

Na manhã seguinte, bem cedo e sem o café da manhã, que não era capaz de engolir, vim para o Rio de Janeiro, para o apartamento da minha antiga companheira de organização. Lívido e com os olhos esbugalhados, toquei a campainha e mal consegui esperar que ela atendesse. Marisa, codinome “Lúcia”, abriu a porta e um sorriso triste e pediu que eu entrasse. Fui direto para o sofá e desabei, pois meu corpo tremia e eu suava frio. Balbuciando, me desculpei por não aceitar o cafezinho que ela ofereceu, pedindo em súplica que sentasse ao meu lado. Falei rapidamente sobre as surpresas contidas no “dossiê” e fui direto para a página 15 da oitava pasta. Eu sabia que “Lúcia” conhecia os nomes verdadeiros de quase todos os integrantes da nossa organização e esperava que ela arrancasse o punhal que me feria o peito, ou que o enterrasse de vez, diante da dúvida terrível que me tomava. A página 15 da oitava pasta continha um relatório sobre minha atuação política depois que saí da prisão e era assinado pela agente dupla de codinome “Carmen”. Eu apenas mostrei a página para “Lúcia” e ela assentiu com a cabeça.

A dor terrível do punhal dilacerando meu peito me fez gritar como um rugido, joguei as pastas no chão e, num segundo pulo, estou aqui, caindo em direção ao asfalto de Copacabana. “Carmen” era o codinome da minha Ana.

22.8.12

A sessão extraordinária de Toffoli

Folha de S. Paulo, 22/08/2012:

A sessão extraordinária de Toffoli

ELIO GASPARI

Sábado, 12 de agosto, 2h30 da madrugada: o repórter Ricardo Noblat deixa a casa onde se comemora o aniversário de Fernando Neves, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, passa pela sala, cumprimenta-o, despede-se também do ministro José Antonio Dias Toffoli e vai em busca de seu carro. Acidentalmente, ouve o que parecia ser uma discussão, talvez uma briga.

Descontando-se os palavrões (pelo menos seis) e as vulgaridades (pelo menos uma), ouve o seguinte:

- O Zé Dirceu escreve no blog dele. Pois outro dia esse canalha o criticou. Não gostei de tê-lo encontrado aqui. Não gostei.

Pelas regras da noite, podia ter dito o que quisesse, na presença da vítima. Se Toffoli não gostou de ter encontrado Noblat na festa, deveria ter saído da casa horas antes, quando ele o cumprimentou pela primeira vez. Até aí, mostrou que é um mau convidado, mas, pelo adiantado da hora, pode-se relevar que tenha produzido um bate-boca sob a forma de monólogo. O ministro não comenta o episódio.

Pelas regras da magistratura, Toffoli não poderia ter revelado a amplitude da simpatia que concede a um réu de processo que está em curso no tribunal onde tem assento. Se o “canalha” não poderia ter criticado José Dirceu porque ele escreve no blog, um ex-advogado do PT pode condenar o ex-chefe?

O doutor Toffoli fez sua carreira na advocacia petista e nas campanhas de Nosso Guia, que o nomeou o advogado-geral da União e ministro do Supremo Tribunal Federal aos 42 anos.

Entre 2003 e 2005, Toffoli ocupou a subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil comandada por José Dirceu. Em voos solo, tentara por duas vezes chegar à magistratura de primeira instância, mas foi reprovado nos concursos públicos.

A presença de Toffoli no julgamento do mensalão é absolutamente legal. Não se pode dizer, como o comissário Luiz Marinho, que “ele não tem o direito de não participar”.

Direito tem, e é dele a decisão. Também é seu direito de tomar as dores de José Dirceu às 2h30 da manhã numa festa onde confraternizava com advogados da bancada de defesa dos réus do processo do mensalão. Da mesma forma, estava no seu direito quando foi à boca-livre do casamento de um advogado amigo na ilha de Capri.

As sessões do STF mostraram momentos de tensão. Há ministros que se estranham, mas, no centro das divergências, sempre há argumentos que contribuem para o bom andamento do processo. São cenas que podem ser mostradas na televisão.

O comportamento de Toffoli na festa de Fernando Neves não contribui para coisa alguma, senão para a crônica dos maus modos. Ele estava fora do tribunal, num evento privado, mas emitiu opiniões relacionadas com um réu do julgamento que está em curso.

O ministro contribuiu para uma edição da autobiografia do jurista Hans Kelsen (1881-1973). Logo dele, que teve uma vida social reclusa. Ao lançar o livro, disse: “Estamos muito acostumados no mundo jurídico a falar sobre a obra da pessoa, discutir sua teoria, suas teses e posicionamentos, mas nos omitimos em estudar a vida e as circunstâncias, ou seja, o que levou ela a desenvolver determinada teoria”. Kelsen falava pouco e certamente dormia cedo.

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Pica Doce

11.8.12

Pica Doce

Blog do Noblat, 11/08/2012:

GERAL
Dias Tóffoli, ministro do STF, me agride com palavrões e baixarias


Acabo de sair de uma festa em Brasília. Na chegada e na saída cumprimentei José Antônio Dias Tóffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal.

Há pouco, quando passava pelo portão da casa para pegar meu carro e vir embora, senti-me atraído por palavrões ditos pelo ministro em voz alta, quase aos berros.

Voltei e fiquei num ponto do terraço da casa de onde dava para ouvir com clareza o que ele dizia.

Tóffoli referia-se a mim.

Reproduzo algumas coisas que ele disse (não necessariamente nessa ordem) e que guardei de memória:

- Esse rapaz é um canalha, um filho da puta.

Repetiu “filho da puta” pelo menos cinco vezes. E foi adiante:

- Ele só fala mal de mim. Quero que ele se foda. Eu me preparei muito mais do que ele para chegar a ministro do Supremo.

Acrescentou:

- Em Marília não é assim.

Foi em Marília, interior de São Paulo, que o ministro nasceu em novembro de 1967.

Por mais de cinco minutos, alternou os insultos que me dirigiu sem saber que eu o escutava:

- Filho da puta, canalha.

Depois disse:

- O Zé Dirceu escreve no blog dele. Pois outro dia, esse canalha o criticou. Não gostei de tê-lo encontrado aqui. Não gostei.

Arrematou:

- Chupa! Minha pica é doce. Ele que chupe minha pica.

Atualização das 3h52m – Imagino – mas apenas imagino – que o ataque de fúria do ministro deve ter sido desatado por um comentário que fiz recentemente sobre a participação dele no julgamento do mensalão. Segue o comentário.

3.8.12

Cidadania e Inclusão Social - Folha ZN 20


Folha ZN, 03/08/2012:

Cidadania e Inclusão Social
ANDREI BASTOS

Deficientes do Brasil

QUEM AINDA NÃO FOI, PRECISA IR à exposição “Para Todos – O Movimento das Pessoas com Deficiência no Brasil” no espaço Estação do Teleférico de Bonsucesso. Com acessibilidade total, a mostra vai até o dia 23, de segunda a sábado das 11h às 19h e aos domingos das 10h às 18h. Por meio de uma linha do tempo, os visitantes fazem um passeio pela história da discriminação sofrida e da organização e luta dos deficientes para terem seus direitos garantidos, com o deslocamento dessa luta do campo da assistência social para o campo dos Direitos Humanos. Todos aproveitam a mostra independente de condição física, sensorial, intelectual ou capacidade de comunicação.

Dize-me em quem votas…
O PROJETO EXCELÊNCIAS, DA TRANSPARÊNCIA BRASIL (www.excelencias.org.br), está botando a boca no trombone, quer dizer, na internet. Conta tudo sobre todos os parlamentares federais, estaduais, e os municipais das capitais brasileiras. O site diz quem é citado na Justiça e Tribunais de Contas, mostra variações patrimoniais, uso de verbas indenizatórias e muito mais. As informações são de fontes públicas e de outros projetos da ONG e, sem dúvida, este é um serviço precioso para a democracia e para os eleitores, que podem saber quem merece ou não seus votos.

Justiça não é revanchismo
A AMEAÇA SOFRIDA PELO GRUPO TORTURA NUNCA MAIS, num telefonema dizendo “nós vamos voltar e isso aí vai acabar” só reafirma a necessidade de se punir os responsáveis pelos crimes da ditadura civil-militar brasileira. Julgar e punir tais criminosos, em tribunais legítimos, não tem nada de revanchismo, pois revanche seria sequestrá-los, torturá-los e assassiná-los, como eles fizeram com opositores do regime usando o aparato do Estado contra grupos ou indivíduos. Julgar e punir tais criminosos são premissas para que “eles” não voltem e não repitam seus crimes.

ANDREI BASTOS é jornalista e integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.
Blog: www.andreibastos.com.br/blog – Email: contato@andreibastos.com.br

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