Trem-fantasma (8)
Estação Gorki
ANDREI BASTOS*
O jipe toma direção diferente da vinda e trafega por área edificada, com grande trânsito de soldados. Embora tranqüilizador, diante das tantas surpresas apresentadas, é melhor não relaxar. A escolta e seu prisioneiro param diante da construção maior, o comando do Regimento Sampaio. Algumas salas e corredores, amplos pela arquitetura colonial, separam o desembarque da grande porta de grades da primeira cela coletiva da viagem de trem-fantasma.
Cenário fantástico! Cela e prisioneiros espantosamente iguais à montagem de "Ralé", de Máximo Gorki, dirigida por Gianni Ratto no Teatro República. Indagadores e preocupados com a saúde mental do recém-chegado, sinalizada como mal pelos olhos outra vez esbugalhados, só que agora de admiração, os presos pensam que acaba de chegar mais um enlouquecido pela estação Barão de Mesquita.
É, a visita de Alex parece ter sido decisiva para colocar os pingos nos is e a visão das paredes com limo da ampla cela coletiva é como se fosse a de um palácio, da ralé, mas, diante dos cubículos que conhecera, um palácio de esbugalhar os olhos!
Em lugar das cinco ou seis celas que compunham o que seria a haste horizontal do corredor em T da Barão de Mesquita, ele tinha à sua frente cinco ou seis camas, arrumadas impecavelmente, com lençóis puídos, é verdade, mas limpos. Avelino indica uma das camas do meio e o novo hóspede se senta e coloca sua sacola de poucas coisas na cabeceira. Todos se aproximam e se organizam em torno, sentando-se nas outras camas, para ouvir o recém-chegado. Menos Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto, que fica meio destacado.
O papo é colocado em dia na hora em que chega a janta - sopa de carne com legumes servida em generosa lata de banha, das quadradas e grandes. Junto vêm os pães acompanhando. Outra vez Avelino toma a iniciativa e leva a lata de sopa para servir no prato de plástico de cada um. Zé Maria, o último maluco que chegara ali, produzido pela tortura e nove meses de solitária, conversa com insetos, particularmente com baratas, e é o mais guloso, a despeito de seu corpo franzino, repetindo duas vezes.
Após a janta e a troca da guarda, Freire se aproxima das grades e confabula com o sentinela, um comportamento surpreendente para o novato, que fica mais surpreso ainda quando o companheiro se aproxima e lhe oferece um cigarro, o primeiro desde que entrou naquela bad trip! Um Minister com filtro, que barato! E deu barato mesmo: depois de mais de dois meses sem fumar, ele, que consumia três maços por dia, experimenta na primeira tragada, profunda, que entra pelos pulmões e percorre todas as veias do corpo, uma descarga quase lisérgica que o deixa tonto e entorpecido.
Ronaldo e Avelino não fumam e mantêm seus físicos atléticos com muita ginástica, todos os dias. Apesar da enorme cicatriz que divide seu corpo na altura do abdome, marca deixada por uma rajada de metralhadora que quase o partiu em dois, Avelino faz incontáveis flexões e abdominais sem demonstrar incômodo. Líder estudantil quando cursava a Belas Artes, tinha sido também objeto do desejo de suas lideradas. Ali, com os longos cabelos lisos raspados e o corpo cheio de cicatrizes, certamente não faria o mesmo sucesso.
Talvez por causa das belas-artes, e porque também é garoto da Zona Sul, dois pontos em comum, Avelino se aproxima do novato e puxa longos papos. Pergunta sobre as coisas da vida, de novas ondas e baratos a movimento estudantil, e propõe jogar xadrez, outro interesse compartilhado. As conversas encontram suporte nas partidas intermináveis, noite adentro.
Pelas mesmas supostas razões da aproximação de Avelino, o último doidão da geladeira parece ser discriminado ou visto com condescendência pelos outros, críticos intransigentes da pequena burguesia. Alguns, como Zé Maria, proleta da ALN, chegam ao desdém. Mas a simpatia prevalece e os laços com cada um aparecem e se afirmam.
Tanto quanto o corpo coberto de cicatrizes de Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto, marcas das vezes em que foi arrastado por jipe, aparece seu refinamento cultural, conquistado em dez anos ou mais de formação na URSS. Da mesma forma, lá se forjara a firmeza ideológica que o autorizava a dizer apenas nome e patente, mesmo sob a tortura mais terrível. Nas folhas de papel almaço entregues ao grupo em salas de aula para que cada um escreva sua história, nas interrupções de banhos de sol, ele também só escreve nome e patente. Amazonense de família rica, sem muitos parentes no Brasil, dizem que o coronel do exército soviético e chefe do setor de inteligência da ALN Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto também tem mulher e filha, só que em Moscou.
Conta a lenda que o coronel cai quando circula nas altas rodas da capital, particularmente entre as mulheres dos poderosos, das quais desfruta todas as intimidades, incluindo-se aí rotinas, horários e roteiros dos maridos. Falando vários idiomas, seu círculo de amizades coloridas se amplia às embaixadas, e por ser um processo contra ele altamente desmoralizador para o regime, fica preso sem acusação. Também conta a lenda que ele é solto sem explicação, quando já não existe nenhum remanescente do seu grupo, e é metralhado na rua ao sair da casa de um amigo, que meses antes o acolhera, para comprar cigarros.
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