21.12.09

Cidade insensata

O Globo, Opinião, 21/12/2009:

Cidade insensata

ANDREI BASTOS

Conheci Lahiry Romero outro dia e fiquei muito impressionado. Tendo aprendido a nadar há apenas nove anos, ela ocupa o terceiro lugar no ranking brasileiro da sua categoria, já quebrou recorde nacional e ganhou cerca de 200 medalhas e troféus. Para conseguir tudo isso, é claro que Lahiry treina quase todos os dias, faz musculação e cuida da alimentação, embora não dispense o chopinho no fim de semana, pois ninguém é de ferro. O bom humor de quem está sempre de bem com a vida é a marca registrada dessa atleta de 81 anos que, evidentemente, não tem dificuldade para andar em nossas cidades e em nossos transportes coletivos sem acessibilidade.

Já a ex-ginasta Luísa Parente, outra pessoa que irradia grande alegria de viver, e dispensa maiores apresentações, eu conheço há mais tempo e igualmente me impressionou bastante. O preparo de atleta duas vezes olímpica lhe deu condições de também enfrentar sem dificuldade a falta de acessibilidade no Rio de Janeiro e no Brasil quando grávida. Cá entre nós, sempre achei que Luísa seria capaz de fazer uma pirueta no quinto mês de gestação.

Da mesma forma, Alarico Moura, ciclista amputado de uma perna há 28 anos, hexacampeão brasileiro, não tem problemas para superar os obstáculos da falta de acessibilidade nas ruas, prédios e transportes. Sem fugir à regra dos vencedores, Alá é muito querido por sua força de vontade e alto-astral e, com seu visual moderno de piercing, barbicha e tatuagens, não gosta de ser chamado de senhor, apesar dos mais de 60 anos de idade.

Ou seja, queridos idosos, gestantes, pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida: todos devemos ser atletas para vencer as dificuldades criadas pela falta de consciência e incompetência dos nossos governantes, que muitas vezes são os primeiros a desrespeitar as leis.

De outra forma, chega de dizer que a falta de acessibilidade resulta de longo e tenebroso inverno obscurantista e que a sociedade precisa ser conscientizada. Já sabemos o que é preciso ser feito, as leis e suas regulamentações estão aí, assim como as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e o que falta para acabar com a desfaçatez é uma verdadeira vontade política, que começa na firme cobrança de direitos pela cidadania, pois todos precisam e se beneficiam do alto grau de civilização que um mundo acessível proporciona.

As ferramentas para a construção desse mundo também já estão aí. O desenho universal e a tecnologia que atende às necessidades específicas de pessoas com deficiências sensoriais e intelectuais, como cegos, surdos, paralisados cerebrais e com síndrome de Down, já estão mais do que suficientemente desenvolvidos para aplicação e uso imediatos. E tais recursos ampliam o conceito de acessibilidade para muito além do mundo físico das cidades, veículos e objetos, atingindo a comunicação, a literatura, o teatro, o cinema e a televisão.

Acessibilidade é tudo isso e serve para tirar as pedras do caminho, tanto nas calçadas como na insensatez humana.

ANDREI BASTOS é jornalista e integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ.

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