31.1.13

Crime continuado

(ou Labirinto tropical)

ANDREI BASTOS

Nos anos 1980, quando uma maré de prosperidade contemplou com o crescimento uma pequena agência de propaganda, que chegou a ocupar cinco salas comerciais, foi cometido um crime, continuado.

Embora Paulo, o proprietário, tenha sido um “rei nos estudos” na infância, como relatou em carta para sua mãe aos oito anos, nunca teve atração pelos números e, certa vez, tirou um sete em aritmética, como lamentou na mesma carta, e novamente lamentou décadas depois, na tal maré de prosperidade, quando sua indiferença lhe custou bom dinheiro.

Envolvido pela pressa dos negócios, o empresário entregou burocracia e números para um competente contador e só tinha tempo para seu trabalho específico. Num determinado momento do crescimento físico da agência, quando ocupou uma sala contígua, surgiu a necessidade óbvia de se fazer uma interligação, por meio de uma porta simples. Paulo não tinha ideia de que providências tomar para abrir portas nas paredes, além de contratar um bom pedreiro e comprar o material necessário.

Ao comentar com seu contador que estava incorporando mais uma sala e abrindo uma porta para integrá-la, este lhe advertiu de que seria necessário enfrentar um périplo kafkiano em repartições públicas por pelo menos seis meses para abrir a porta da forma correta. Sua preocupação com excelência operacional o levou a desconsiderar a advertência e, ao mesmo tempo, autorizou o contador a providenciar a papelada e contratou o bom pedreiro.

Certamente atraído pelo barulho da marreta, um cidadão que o empresário sempre via entrando no prédio lhe fez uma visita. Como ele também já tinha visto o homem sorridente com o síndico, que era seu amigo, mandou logo servirem cafezinho e água gelada. Entre sorrisos e elogios ao café, nosso herói deixou de reparar os movimentos repetitivos do nariz do visitante, mas ficou impressionado com o brilho dos seus olhos pequenos. Desarmado pela proximidade que ele aparentava ter com seu amigo no prédio, perguntou pelo motivo da visita. Pousando lentamente a xícara no pires, enquanto fazia uma consideração elogiosa ao crescimento da firma, o visitante se apresentou como fiscal da prefeitura.

O reinado nos estudos na infância credenciava Paulo para captar a mensagem imediatamente, e seu último gole de café desceu esfriado pelo clima estabelecido, para um estômago já esfriado pelo susto de ter sido “apanhado em flagrante”. A parede já estava derrubada no espaço correspondente à porta, que só esperava os arremates de alvenaria para ser encaixada. Depois de apreciar esse cenário, o revelado fiscal da prefeitura virou apenas os olhos pequenos e brilhantes, olhando pelo canto deles, e falou com os lábios semicerrados: “E agora, doutor, como resolvemos isso?”.

Quixotescamente, imbuído da ética de quem quis mudar o mundo aos 17 anos, nosso herói lhe disse para seguir em frente e aplicar as multas devidas. O fiscal então se virou e, com o canto direito da boca levantado num sorriso irônico, “aconselhou” Paulo a consultar o contador e o amigo síndico, dizendo que voltaria em três dias para “outro cafezinho”.

Revoltado com a situação, o homem de negócios descarregou sua indignação no pobre contador e no amigo síndico. Ambos se expressaram de maneira equivalente a “perdeu, playboy!” e relataram histórias de perseguição de empresários por fiscais da prefeitura, com vidas transformadas em infernos particulares. A paranoia que atormentou nosso patrão-herói depois que foi preso pela ditadura na juventude, reacendeu e assombrou as noites que antecederam o “outro cafezinho” com seu fiscal particular.

Embora profundamente perturbado, por contrariar seus princípios e pelo pavor de passar a viver um mundo kafkiano, Paulo acatou a recomendação dos amigos e perguntou no retorno do seu visitante como resolveriam a situação. Os olhos pequenos do fiscal brilharam com mais intensidade e ele discorreu sobre a necessidade de aprovação de um projeto em inúmeras repartições e departamentos, de engenharia, bombeiros etc., deixando claro que poderia fazer tudo, que ele era uma espécie de holding, e concluiu o discurso com um sorriso e um preço.

A partir de então, a folha de pagamentos da agência ficou acrescida desse “funcionário” que, mesmo aposentado, até hoje passa na agência uma vez por mês para “tomar um cafezinho”. Há mais de duas décadas, Paulo sempre o recebe com algum presente, que antes era para Paulinho, o filho do fiscal de quem foi padrinho em 1990, e agora é para Ana Paula, a filhinha de dois anos de seu afilhado com a esposa, Ana.

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