17.1.07

Trem-fantasma (9) - último capítulo

Estação Regimento Sampaio

ANDREI BASTOS*

Logo acontece troca no elenco do arremedo de peça de Gorki: sai Ronaldo, entra João, cuja fama de ter sido o primeiro preso político a fumar baseado na cadeia corre os cárceres e sempre o antecede. O primeiro, mas não o único, que o digam as paredes das celas do quartel do Leblon.

No dia-a-dia agora monótono, a rotina da “Ralé” se divide entre os ginastas e os preguiçosos, não necessariamente gordos, pois são justamente os magricelas que não querem nada com o basquete. Aliás, com a saída de Ronaldo, a turma da preguiça ficou em maioria e só Avelino e Zé Maria suam a camisa de verdade, várias vezes por dia. Os outros se contentam em caminhar em círculos e abrir e fechar os braços, na vertical e na horizontal, durante a hora de banho de sol diária.

A quebra da monotonia é feita várias vezes por conflitos muito distantes das acontecências da Barão de Mesquita. É coisa de recusar comida quando ela chega misturada como lavagem para porcos e mergulhada na banha fria. Nem sempre tem alguém com saco para separar os grãos de arroz e de feijão e os pedaços de carne ou frango da gordura. A resposta, imediata, é recolher as caixas de fósforos e fica-se sem fumar, supremo castigo para quem já se considera num balneário. Sem ter mesmo o que fazer, a turma resolve fazer fogo para acender um cigarrinho esfregando um cabo de vassoura no outro, em revezamento dia e noite até conseguir, suprema vitória.

Apesar do clima favorável, quando chega a escolta e convoca algum dos prisioneiros a recolher seus pertences, a apreensão é grande, todo o passado muito recente desaba em toneladas sobre suas cabeças, como na vez do ex-doidão da geladeira. Ele sai da cela escoltado, sob olhares que se esforçam para confortar, percorre os corredores largos, chega no amplo saguão da entrada principal do quartel e, ali, sem nada além da sacola com suas poucas coisas, ouve perplexo a ordem para ir embora dada pelo sargento comandante da escolta, que lhe aponta o portão que leva para a rua.

Como assim? Como ir embora sem nem um centavo? E depois, dar um passo além daqueles muros, sozinho, é tão assustador quanto o primeiro passo dado quando o cerco ao apartamento foi percebido. Que situação maluca! Que porra de liberdade é essa? Será na verdade uma armadilha? A dúvida fica maior ainda quando a escolta simplesmente vai embora e o prisioneiro fica parado na porta, olhando para todos os lados pra ver se tem algum fusca ou Veraneio dando bandeira nas redondezas. De jeito nenhum ele sai dali assim, sem pai nem mãe, sem dinheiro para pegar ônibus! Tá doido?

“Ô sargento, me arruma pelo menos uma ficha de telefone para eu chamar alguém!”

O carro da grande empresa estatal em que trabalha um tio chega com o sol ainda alto, apesar da demora, só com o motorista. Apesar de isso fazer com que a insegurança permaneça, talvez porque a vontade de acreditar seja maior, o logotipo da companhia pintado nas portas é apressadamente aceito como garantia de salvo-conduto, e o ex-prisioneiro embarca para a viagem de volta.

Apesar de a longa e cinzenta Avenida Brasil ficar marcada na memória, as cores da vida aparecem novamente, pela janela do carro, e a cidade está surpreendentemente nova e lavada.

O Rio de Janeiro continua lindo.
______________________

* Edgard de Aquino Duarte, Sérgio Landulfo Furtado e Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto são personagens com nome e sobrenome porque estão na lista de presos políticos brasileiros desaparecidos. Citar seus nomes é uma forma de lembrar que é preciso saber o que aconteceu com eles.
______________________

*Site: http://www.andrei.bastos.nom.br

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial