A última grande luta
ANDREI BASTOS
Don Aucoin, jornalista americano, afirmou no artigo “A última grande luta”, publicado em 2008 no jornal The Boston Globe, nos EUA, que a emancipação da pessoa com deficiência se equipara às lutas do negro e da mulher por direitos e é a última com tal dimensão. Quanto à equiparação, tudo bem, mas quanto a ser a última, acho que não. Sendo pessoa com deficiência, como posso dizer isso? Acontece que minha deficiência resultou de um câncer, contra o qual estou comemorando dez anos de luta vitoriosa.
Fiz um bom negócio ao pagar pela vida com a deficiência. Por outro lado, enfrentar dias e noites com uma doença grave me fez entender direitos humanos e dignidade de forma muito peculiar. Tais conceitos contemplam a todos e têm que promover nos doentes graves a elevação da autoestima. Como? É questão delicada, a ser enfrentada com igual delicadeza, e que define a garantia de direitos e dignidade dessas pessoas como a verdadeira última grande luta.
Ao contrário da tradicional roleta russa, praticada com uma bala, em 2003 fui instado a fazer uma com cinco balas. Tratava-se de seis ciclos de quimioterapia, um leve e cinco pesados. A comparação se deveu à não garantia de bom resultado, pois a recidiva do tumor descoberto em 1999, e combatido desde então, me incluiu num percentual mínimo de doentes de câncer para os quais a Medicina não sabia o que fazer, segundo os médicos.
Aceito o desafio, fiz o primeiro ciclo, mas logo concluí pela analogia com roleta russa. Após a aplicação do remédio, acordei um dia numa poça de sangue, que literalmente jorrava do meu nariz. Quarenta dias depois, recuperado e decidido a respeito da continuidade ou não do tratamento, perguntei ao médico se quimioterapia matava e se ele já tinha perdido pacientes com ela. Diante das afirmativas, eu lhe disse que não seria o próximo.
Ao contrário do que possa parecer, eu não estava dando uma de machão, mas sim apresentando o resultado da minha reflexão sobre a situação delicada em que me encontrava. Minha decisão se deveu ao medo da morte certa, diante das cinco balas representadas pelos ciclos restantes, e não à coragem de enfrentar a morte incerta, anunciada pelos médicos como uma incógnita. Assim, sem mais nenhum remédio, cheguei até aqui, quando temos um documento científico indicando o não tratamento para casos como o meu.
Ouvimos a vida inteira que a cura começa na vontade do doente, o que é verdade. Mas para existir essa vontade, e para que ela seja fortalecida, também é preciso garantir direitos e dignidade criando-se condições para a pessoa com doença grave, com apoio e participação de familiares e amigos, ir além dela mesma e lutar socialmente, entre muitas outras coisas, por atendimento de qualidade no sistema público de saúde e por incentivo a pesquisas científicas, como a das células-tronco, uma luta vitoriosa de todos.
O direito ao remédio e à saúde, que parece tão óbvio, na verdade enfrenta barreiras mais terríveis do que as que mulheres, negros e pessoas com deficiência enfrentaram e enfrentam. Apesar de tal direito ser entendido como universal e inquestionável, a grande maioria dos doentes graves não tem os privilégios que eu e outros mais ou menos bem-nascidos temos, de bons médicos e hospitais cinco estrelas, e, para o usufruírem precisam superar não apenas preconceito, discriminação e pouco discernimento, mas, sobretudo, interesses inescrupulosos de um mercado da vida e da morte que não oferece boas chances de sobrevivência aos pobres.
Don Aucoin, jornalista americano, afirmou no artigo “A última grande luta”, publicado em 2008 no jornal The Boston Globe, nos EUA, que a emancipação da pessoa com deficiência se equipara às lutas do negro e da mulher por direitos e é a última com tal dimensão. Quanto à equiparação, tudo bem, mas quanto a ser a última, acho que não. Sendo pessoa com deficiência, como posso dizer isso? Acontece que minha deficiência resultou de um câncer, contra o qual estou comemorando dez anos de luta vitoriosa.
Fiz um bom negócio ao pagar pela vida com a deficiência. Por outro lado, enfrentar dias e noites com uma doença grave me fez entender direitos humanos e dignidade de forma muito peculiar. Tais conceitos contemplam a todos e têm que promover nos doentes graves a elevação da autoestima. Como? É questão delicada, a ser enfrentada com igual delicadeza, e que define a garantia de direitos e dignidade dessas pessoas como a verdadeira última grande luta.
Ao contrário da tradicional roleta russa, praticada com uma bala, em 2003 fui instado a fazer uma com cinco balas. Tratava-se de seis ciclos de quimioterapia, um leve e cinco pesados. A comparação se deveu à não garantia de bom resultado, pois a recidiva do tumor descoberto em 1999, e combatido desde então, me incluiu num percentual mínimo de doentes de câncer para os quais a Medicina não sabia o que fazer, segundo os médicos.
Aceito o desafio, fiz o primeiro ciclo, mas logo concluí pela analogia com roleta russa. Após a aplicação do remédio, acordei um dia numa poça de sangue, que literalmente jorrava do meu nariz. Quarenta dias depois, recuperado e decidido a respeito da continuidade ou não do tratamento, perguntei ao médico se quimioterapia matava e se ele já tinha perdido pacientes com ela. Diante das afirmativas, eu lhe disse que não seria o próximo.
Ao contrário do que possa parecer, eu não estava dando uma de machão, mas sim apresentando o resultado da minha reflexão sobre a situação delicada em que me encontrava. Minha decisão se deveu ao medo da morte certa, diante das cinco balas representadas pelos ciclos restantes, e não à coragem de enfrentar a morte incerta, anunciada pelos médicos como uma incógnita. Assim, sem mais nenhum remédio, cheguei até aqui, quando temos um documento científico indicando o não tratamento para casos como o meu.
Ouvimos a vida inteira que a cura começa na vontade do doente, o que é verdade. Mas para existir essa vontade, e para que ela seja fortalecida, também é preciso garantir direitos e dignidade criando-se condições para a pessoa com doença grave, com apoio e participação de familiares e amigos, ir além dela mesma e lutar socialmente, entre muitas outras coisas, por atendimento de qualidade no sistema público de saúde e por incentivo a pesquisas científicas, como a das células-tronco, uma luta vitoriosa de todos.
O direito ao remédio e à saúde, que parece tão óbvio, na verdade enfrenta barreiras mais terríveis do que as que mulheres, negros e pessoas com deficiência enfrentaram e enfrentam. Apesar de tal direito ser entendido como universal e inquestionável, a grande maioria dos doentes graves não tem os privilégios que eu e outros mais ou menos bem-nascidos temos, de bons médicos e hospitais cinco estrelas, e, para o usufruírem precisam superar não apenas preconceito, discriminação e pouco discernimento, mas, sobretudo, interesses inescrupulosos de um mercado da vida e da morte que não oferece boas chances de sobrevivência aos pobres.
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