27.6.10

Ciência e perfeição

ANDREI BASTOS

Meu aniversário de 59 anos está chegando e lembrei que, pelos meus cálculos, também estou perto de atingir a perfeição. Esta lembrança e a leitura da notícia da cura da cegueira com células-tronco me fizeram reviver uma tarde de verão escaldante, há mais ou menos três anos, quando fui almoçar com meu amigo do trabalho Fernando, quase saltando do prédio refrigerado do escritório até a praça de alimentação igualmente refrigerada.

Depois de fugirmos aos pulos do calor insuportável da rua, começamos a derreter o ar condicionado que recebíamos esperando a desocupação de uma mesa. Finalmente sentados, em meio à barulheira dos talheres confundida com a falação intensa das pessoas, nos enganamos sorridentes achando que seríamos atendidos logo.

Irritado com a demora da garçonete, que em muitas idas e vindas passava por nossa mesa sem ao menos nos olhar, Fernando ameaçou ir embora. Foi então que refleti sobre a esperança de melhores dias com os avanços científicos e minha trajetória de vida até aquela tarde e segurei meu companheiro pelo braço.

Pedindo paciência, disse que era mesmo um absurdo o que acontecia e que absurdo maior era a necessidade que a gente tinha de comer, o quanto isso era primitivo e nós éramos máquinas precárias, com menos autonomia do que muitas das que construíamos. Falei sobre nossa desagradável ida àquele lugar, interrompendo o trabalho e enfrentando mudanças bruscas de temperatura, sobre o péssimo atendimento, e também que, quando fôssemos servidos, comeríamos muito e depressa por causa da ansiedade e da demora, ficando empanzinados e mal humorados, prejudicados para retomar as tarefas do dia.

Mas, continuando o que já era quase um discurso, disse que a certeza que tinha de que estava no caminho da perfeição me tranquilizava. Diante do olhar indagador de Fernando, contei que conhecera um monge que se tornou meu exemplo de vida. Ele não dormia e não comia, vivendo em meditação. Falei do meu espanto ao chegar um dia no templo e encontrá-lo, em posição de lótus, a pelo menos um metro e meio do chão! Meu colega, a essa altura de olhos arregalados, demonstrou incredulidade, mas, desarmado pela minha convicção, continuou a me ouvir.

Prossegui, dizendo que não estava longe do meu objetivo de ser igual ao monge, que minha vida apresentava um ritmo bem definido nessa direção. Afinal, continuei com ar de confissão, aos vinte anos, depois de vários heróis morrerem de overdose e de eu ter ouvido num começo de noite, com a vinheta do jornal das sete ao fundo, todos os sons e conversas de todos os apartamentos de todos os prédios diante da janela em que viajava de LSD, resolvi tomar um ácido para decidir parar com as drogas. Aos trinta, depois de capotar de carro duas vezes por causa do alcoolismo, parei de beber. Aos quarenta, continuei diante do olhar espantado de Fernando, olhei para os três maços de cigarro que fumava diariamente e resolvi presentear minha secretária com eles e, finalmente, agora provocando gargalhadas no meu amigo, depois de muita luxúria, aos cinquenta anos descobri os prazeres do espírito e parei de trepar. Quem disser que trepou comigo depois, pode ter certeza de que viveu a mais completa fantasia.

A essa altura, já na penúltima garfada, concluí que para fechar minha trajetória, aos sessenta anos, só me falta parar de comer e passar a viver de luz, não voltando mais ao trabalho de barriga cheia, sonolento – o que eu e Fernando, ainda distantes da perfeição, acabamos fazendo naquela tarde suarenta e carente de conquistas científicas.

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