26.2.11

A fera musculosa

Blog Pra lá de Balzac, 25/02/2011:

A fera musculosa

RENÉE DURÃO

Aconteceu de novo. Roberto me ligou chorando às quatro horas da manhã. A lenga-lenga de sempre: o mundo tramava contra ele, as pessoas o desprezavam e, naquela solidão incorrigível, estava “no paredão pronto para sair da casa”. Este finalzinho, de humor duvidoso, me confortou porque sei que os idiotas têm menos chances de estourar os miolos ou ato semelhante. Qual boa samaritana, não dormi mais e me pus a compor meticulosamente meu “reality show” de salvamento. Pura rotina.

Preparei um café da manhã indicado para aquelas ocasiões. Caprichei na goiabada dentro do pão, café bem forte e uma dose dupla de bagaceira que o Servílio traz de Lisboa todo ano, sem falta (essa história eu conto depois). Saudades do gajo. Energizada, às seis horas já estava vestida, maquiada e perfumada. Divina, afirmo sem vacilar. O detalhe era a sandália. Salto agulha vinte, dourada, trançada até quase o joelho, feitas sobre encomenda (não se encontram dessas maravilhas tamanho quarenta e três no mercado). Quarenta minutos de ônibus e eu começaria meu show. Mas teve um probleminha.

Coletivo não muito cheio, pistas desengarrafadas na manhã de sábado e o motorista dirigia como se estivesse numa pista de Fórmula 1. Dava arrancadas espetaculares e freadas não menos bruscas sem que os passageiros reclamassem. Acho que se acostumaram e aturavam tudo, desde que chegassem logo onde queriam. Numa dessas uma velhinha quase saiu pelo para-brisa.

Sou cidadã, vacinada, trabalho, pago impostos e exijo meus direitos. Falei bem alto “vai tirar o pai da forca?” Não respondeu. Mais uma arrancada e eu acrescentei “ou vai tirar a mãe da zona?”, com a grossa voz natural que disfarço. Foi mal, não consegui manter a classe e dei início a uma boa confusão. O passageiro do banco da frente, como todos os outros, não se colocou em minha defesa e, eu acho, a homofobia falou mais alto. Bem alto: “cala a boca bicha velha”! Até aí nada de muito grave. “O rapaz tá ansioso” da gorda do lado já me incomodou. O caldo entornou de vez quando, às gargalhadas, o “piloto” bradou “fica quieta lacraia”! Aí, baixou o Demerval.

Quem já viu filme de bichos certamente notou que quem caça é a leoa. Feroz, de garras poderosíssimas, implacável quando alcança a presa. A fera fêmea. Demerval Custódio do Nascimento (está, ainda, na minha carteira de identidade) tem um metro e noventa, seios turbinados e bunda espetacular que cohabita com musculatura bem desenvolvida desde os tempos de exército, trabalhada em academia. Sou, com orgulho, uma daquelas coroas marombeiras. Demerval às vezes toma o lugar de Renée, que não escapa de seus genes e da testosterona.

Distribuí bolsadas, sopapo, rabo-de-arraia, puxões de cabelo, deixando uma potente mordida de orelha para o meu Aírton Senna que tremia de medo. Quando alguém gritou “polícia” tirei as lindas sandálias, pulei do ônibus já parado e saí correndo. A felina em fuga estratégica. Vitoriosa.

Roberto abriu a porta sem reparar que eu estava descalça, com as unhas vermelhas descascando sobre pés sujos e feridos, suada, descabelada, o lixo do luxo. Com um iluminado sorriso cretino, lépido e fagueiro, disse “querida, estou assando um franguinho para a gente comer com farofa e cervejinha e de noite ver o Big Brother. Hoje tem prova do líder”. Se aguenta Demerval!

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial