20.8.08

Brincadeira tem hora


Brincadeira tem hora

ANDREI BASTOS

Diz o ditado que não basta à mulher de César ser honesta. Ela tem que parecer honesta. Em outras palavras, ao menos para mim, entendo que devo me esforçar para ser coerente com minhas convicções em todas as atitudes, em público ou reservadamente.

Ontem fui convidado por uma amiga cadeirante para acompanhá-la na “cerimônia de entrega dos termos de outorga da Faperj” para o projeto Construindo a Cidadania da Pessoa com Deficiência, no Palácio Guanabara, com a presença do governador, do secretário estadual de Ciência e Tecnologia e outras tantas pessoas importantes. Em outras palavras, era um oba-oba para repercutir a liberação magnânima de dinheiro público para pesquisas na área das deficiências, o que considero apenas uma obrigação do Estado, muito insuficiente, diga-se de passagem.

Como nunca é demais repetir, da mesma forma que não sou da milícia, do tráfico, do bicho ou de qualquer esfera de governo, também não integro nenhuma instituição beneficiada pelos “termos de outorga” citados acima. Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, uma pessoa com deficiência sem rabo preso, e não devo satisfação ou obediência a ninguém. Só à minha consciência.

Quando cheguei com minha consciência na porta do Palácio, fui informado que a solenidade aconteceria no segundo andar e que o único acesso era a escadaria que me foi apontada. Surpreso, perguntei se existia elevador e me foi dito com muita gentileza que não, mas que eu poderia ser carregado pelos seguranças. Com igual gentileza agradeci a oferta, delicadamente informei da minha surpresa por um evento relacionado à pessoa com deficiência ser realizado num lugar inacessível no próprio palácio do governo, que deveria ser o primeiro a cumprir a lei, e conclui dizendo, também delicadamente, que não aceitava ser carregado e que permaneceria ao pé da escada, em protesto, durante todo o tempo da cerimônia. Eles compreenderam e civilizadamente me ofereceram uma cadeira.

Contando aqui o que aconteceu, eu não pretendo julgar ninguém. Meu objetivo é somente relatar os fatos, responder às interpelações que me foram feitas e não deixar dúvidas sobre o meu comportamento.

Começando pelo fim, da cerimônia, bem entendido, encontrei um amigo que me conhece há 40 anos, o doce e bem-humorado Silvio Tendler, que disse que meu protesto teria sido mais eficaz se eu tivesse aceitado ser carregado e, durante o evento, tivesse tomado a palavra e dito em tom de brincadeira: “Governador, já está na hora de colocar um elevador!”. Sorrindo, pois meu protesto não era mal-humorado, discordei do meu amigo. Brincadeira tem hora, e aquela não era hora de brincadeira.

Bem antes do encontro com o Silvio, quando as pessoas ainda estavam chegando, me foi dito que aquele não era um momento apropriado para protestar, pois ali se efetivava uma grande e inédita conquista das pessoas com deficiência do Rio de Janeiro, e que eu deveria subir. Para completar, também me foi dito que eu deveria ir embora no caso de não querer subir por meus próprios meios ou carregado.

Minha consciência, que até então quase adormecia de tão tranqüila, despertou inquieta e sugeriu que eu respondesse, sempre educadamente como mamãe ensinou, que não era minha intenção estragar a festa de ninguém e sim me manifestar, de maneira solitária, silenciosa e calma, sem nenhum espalhafato, pelo que considerava ser um direito meu, que é o da acessibilidade num prédio público, cujo prazo para implementação, determinado pelo Decreto-lei 5.296 de 2 de dezembro de 2004, venceu no dia 3 de junho de 2007.

Quanto a me dizerem pra subir ou cantar pra subir, eu nem levei em consideração, e não levaria mesmo que fosse o próprio Papa o autor de tal despropósito ou que fizessem qualquer tipo de ameaça à minha integridade física. Aí mesmo é que minha consciência não ia me deixar quieto. Afinal, eu perdi uma perna mas não a dignidade e a coragem.

Por último, e como antecipei no começo do texto, a liberação de recursos públicos para pesquisas, na área das deficiências ou não, é uma obrigação do Estado e é pequeno e profundamente constrangedor dar um caráter de solenidade e magnanimidade a eventos dessa natureza, por mais expressivos que sejam os valores envolvidos, e mais desconcertante ainda quando não é este o caso. Além do mais, eu sou intransigente sim em relação aos direitos das pessoas com deficiência, não os negocio em palácios ou onde quer que seja e, diante dos rapapés e salamaleques baratos dessas ocasiões palacianas, acho mais digno pedir esmolas nos sinais de trânsito.

Meu preço é muito alto. Meu preço é o cumprimento da lei.

1 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Andrei, não duvidando do seu relato, acho muito estranho pois nas obras do Palácio Guanabara foi colocado um elevador exatamente para os idosos e portadores de necessidades. Não sei a quem vc se dirigiu pois o cerimonial sempre encaminha para o elevador quem necessitar. Vc sabe me dizer quando foi esse evento?

4:25 PM  

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