6.9.09

Lições no ônibus

O Globo Online, Ancelmo.com, Chope do Aydano, 10/08/2009:

CRÔNICA DE SEGUNDA
Lições no ônibus (e outras de Nova York)

AYDANO ANDRÉ MOTTA

Uma a uma, a menina acerta as questões da lição que liga uma figura à letra que lhe serve de inicial. Jardim de infância. O sorriso de justificado orgulho da mãe conquista e comove quem está em volta, testemunhas do desabrochar intelectual. O ensinamento maior vem no endereço da cena: um ônibus da linha M11, que vai pela Décima Avenida, Manhattan acima, em direção ao Upper West Side. Em volta das lições, um punhado de humanos, locais e visitantes, de vidas, cores, crenças e objetivos distintos compartilham a viagem plácida, em velocidade sensata, no meio da ensolarada tarde de verão novaiorquino. Porque assim deve ser.

Viajar de ônibus pela mais famosa cidade americana é um presente de civilidade e cidadania. Não há impaciência nem açodamento - quem está com pressa vai de metrô ou, conforme a dimensão do drama, de táxi -, apenas hospitalidade e cortesia. O motorista segue a regra de falar o mínimo - respeitados os limites das boas maneiras. Assim, para uma informação precisa, basta perguntar. Nos pontos (só lá ele para, claro), a suspensão garante o show, descendo até quase o chão, para desaparecer com o degrau e garantir o conforto dos velhinhos e o acesso aos deficientes.

Ao olhar carioca, curtido na cotidiana selvageria dos mamutes de ferro e borracha que sequestram nossas ruas, um espetáculo. Como qualquer cidade civilizada, Nova York escapou da tragédia do transporte de massa sobre rodas - lá, o metrô cumpre a missão, oxigênio puro para qualquer aglomerado urbano. Sobra aos ônibus o papel de coadjuvante, que garante o sucesso de público e crítica. Aqui, a aposta nasceu errada, não tem conserto, nem nunca terá. De tão ruim, piorou, de degradou, até desembocar nas vans que viraram kombis e, piratas na essência ainda que legalizadas na hipocrisia eleitoreira, conduzem a cidade na mão única - e sem volta - do caos.

A menininha vira as páginas, acertando uma pergunta após a outra, cada vez mais segura. Nada de ruim lhe acontecerá ali. Os ônibus de Nova York também estão a salvo da indignidade dos assaltos que no Rio se banalizam, barbárie atirada à desimportância dos crimes de segundo escalão. O mundo, à exceção das vítimas, os enxerga apenas na desimportância estéril das estatísticas. O próximo!

E, para fechar a tampa da humilhação que tem como cúmplices rigorosamente todos os nossos governantes, ainda tem bilhete único.

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O verão transforma Nova York num oceano de chinelos, bermudas e camisetas. Vários trechos da cidade, a começar por Times Square, são fechados ao trânsito e o povo é convidado a sentar em cadeiras oferecidas pela prefeitura. De graça, para passar a vida, e vê-la passar. Exibida como a terra carioca, a megalópole americana se apresenta sem cara - ou com todas elas ao mesmo tempo. É a materialização da gíria, que até parece inspirada em novaiorquinos fatos reais: todo mundo junto e misturado.

Falta, talvez, um pouco da sem-cerimônia que garante o molho na orla da Zona Sul, nos domingos a salvo dos carros. Sábado, a Park Avenue - ninho dos zilionários consagrado por Tom Wolfe em “A fogueira das vaidades” - fechada, o povo andava e pedalava… respeitando a mão das pistas. Até disciplina tem limite.

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Mais e mais, o espanhol cristaliza-se como a língua que invade os ouvidos. E o próximo capítulo na saga da cidade forjada pela imigração está anunciado: os orientais estão chegando. Com sua Chinatown, engoliram Little Italy, hoje reduzida a um par de ruas, e vão se espalhando - em Manhattan e no mundo, como prova a velha e boa Saara, a um continente de distância, no Centro do Rio.

*****

Numa terra tão diversa, a mazela mais comum surge ensurdecedora, com os novaiorquinos ao volante: como eles buzinam! De dia ou de madrugada, na ruazinha residencial ou na avenidona dos gigantes de concreto, para o ônibus que parou, o pedestre que se distraiu ou pela mais desimportante razão, o estrilar metálico é instantâneo.
Parecem até…

***

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