19.4.12

A "outra"

Sabedoria

ANDREI BASTOS

Há alguns anos eu estava procurando apartamento para alugar e, entre os vários imóveis que visitei por indicação de uma amiga corretora, fui a um endereço na Rua Hilário de Gouveia, em Copacabana.

Minha amiga disse que o apartamento estava mobiliado e que eu poderia ficar com toda a mobília ou parte dela, bastando avisar para que retirassem o que não me interessasse. Depois de pegar as chaves com ela, fui sozinho visitar o imóvel.

Prédio dos anos 1950, hall de entrada amplo, garagem, porteiro simpático, tudo muito bom. Eu já sabia que o apartamento também era amplo, de quatro quartos, pois era o que eu precisava, e podia pagar, naquela época.

Meti a chave na porta e tive minha primeira surpresa ao passar do hall do elevador para uma saleta que, em muitos outros apartamentos, poderia ser chamada de sala. Tudo era grande, os espaços generosos. Tão generosos que me fizeram estancar diante das três salas interligadas e avarandadas, enormes.

Na primeira sala, uma comprida mesa de jantar com doze cadeiras se impunha como sagrado lugar de encontro familiar; em outra, dois sofás e quatro poltronas aconchegantes convidavam para boas conversas ou cochilos; e na última, reinava absoluto um belo piano de cauda. Tudo complementado com mesinhas e cristaleiras, estas repletas de peças finamente trabalhadas.

Atordoado, prossegui na exploração daquele mundo que acabara de descobrir e continuei a ter surpresas, uma atrás da outra. O primeiro quarto, perto da saleta da entrada, tinha sido transformado em escritório, com sólida mesa de madeira nobre no centro e paredes cobertas de estantes tomadas por livros de Direito.

Depois, conheci a suíte de hóspedes e a do casal, mobiliadas com bom gosto, o quarto da filha, decorado com motivos infantis femininos, e um banheiro no meio do corredor. A grande surpresa desta etapa é que os armários estavam cheios com as roupas dos antigos moradores. Ternos, camisas, vestidos, meias, sapatos, estava tudo lá, em perfeito estado!

Como se não bastasse, na cozinha encontrei a geladeira ligada e cheia de comida e, acima da minha cabeça, uma gaiola com passarinho, vivo e cantarolante. Fiquei achando que minha amiga corretora tinha me dado as chaves da casa dela.

De volta ao meu escritório, liguei para minha amiga e lhe disse que tudo me parecia irreal, que ela devia ter se enganado com as chaves.

Depois de rir muito, ela falou que não tinha se enganado e que tudo era real. Contou que um casal morou ali a vida inteira, desde a construção do prédio, teve uma união tranquila e aparentemente feliz, com apenas uma filha, que se casara com um advogado tão bem-sucedido quanto o pai e morava na Lagoa. Disse ainda que o velhinho tinha morrido há coisa de uns dois meses, de velhice mesmo, e a família, mexendo na papelada, acabou descobrindo uma linha telefônica no nome dele, no Méier!

Pois é, finalizou minha amiga, puxaram o fio do telefone, quer dizer, da meada, e acabaram descobrindo que o pacato velhinho mantinha outra família, pelo mesmo tempo do seu “casamento feliz”, com direito a três filhos e quatro netos! Foi uma verdadeira tragédia familiar e a velhinha, com indignação do tamanho do mundo, saiu de casa só com a roupa do corpo, que queimou assim que teve outra, não querendo mais saber de nada que lembrasse o indigitado, particularmente do passarinho!

Minha sábia mulher preferiu outro imóvel, inteiramente vazio…

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