Um último presente de Natal
O Globo, Opinião, 18/12/2012:
Um último presente de
Natal
DANIEL AARÃO REIS
O senhor K teve um estalo: Ana não o procurava há dias.
Mau presságio. Corria o início dos anos 1970. Para uns, tempos reluzentes, para
outros, sombrios. Telefonou e o sinal de chamada tocou, tocou, até que
desistisse. Esperou. Os dias passaram-se e nenhum indício. No radar afetivo a
filhinha querida entrara em eclipse.
O Senhor K correu atrás. Moveu e removeu céus, terras e
montanhas. Foi à Escola de Química onde ela trabalhava. Nada. Ninguém sabia de
nada. Desviavam os olhos dele. Desviavam-se dele.
Por intermédio de amigos e conhecidos procurou ouvidos e
encontrou paredes. Às vezes, um silêncio distraído, constrangido. Quase sempre,
arrogante. Não sabiam onde ela se encontrava, não queriam saber, nem o
ajudariam a saber. Experimentando uma imensa fragilidade, uma sensação de
impertinência e de inadequação, descobriu-se então o Senhor K numa comunidade.
Como ele, havia outros tantos que andavam em busca de afetos perdidos.
Sentiu-se agora mais forte, porque os humanos, quando juntos, cultivam uma
ilusão de calor e força, mas nem por isso os resultados foram efetivos.
A filha desaparecera.
Mais tarde, quando já quase desistira de procurar, não de
esperar, o Senhor K passou a receber pistas falsas. Os algozes divertiam-se,
observando-o em buscas desesperadas e desesperançadas. Apesar de inúteis, não
dava para ignorar as indicações, mesmo que intuísse que não levariam a lugar
algum.
Mas as provações não tinham chegado ao fim. Houve ainda a
reunião da Congregação da Escola de Química da Universidade de São Paulo. Em
pauta, a demissão da filha por “abandono do trabalho”. Aquelas excelentes pessoas
sabiam que a jovem doutora Ana Rosa Kucinski Silva não tinha “abandonado o
trabalho”; fora sequestrada e assassinada pela policia política do Estado.
Fingiram ignorar os fatos e aprovaram a demissão. Por justa causa. Para agradar
o poder, garantir verbas e, disse um deles, salvar a instituição. Ninguém falou
nem votou a favor de Ana.
Coisa semelhante aconteceu com Carlos Alberto Soares de
Freitas, o Beto. Em algum momento de fevereiro de 1971, sumiu do mapa.
Prevenidos, os familiares saíram à busca. Andaram Seca e
Meca, de déu em déu. Delegacias, quartéis, amigos, conhecidos, a varredura dos
espaços, inútil. O radar, mudo, não encontrava sinais.
A mãe e o pai escreveram às autoridades cartas
comoventes. Tiveram como resposta o silêncio. Um dia, já não suportando a dor,
a mãe dirigiu-se a um alto general. O homem maneou a cabeça, não sabia de nada.
Os braços da mãe o sacudiram: “Como o senhor não sabe de nada, se nós sabemos
de tudo?” O sujeito endireitou-se, abriu a gaveta da mesa e mostrou uma
metralhadora.
Foi o sinal mais concreto que a família de Beto teve de
seu destino.
Muitos anos depois, soube-se que Ana e Beto haviam
passado pela chamada Casa da Morte. Um aprazível lugar em Petrópolis onde os
revolucionários presos eram torturados, assassinados e esquartejados. Segundo o
testemunho de um policial, os pedaços dos corpos, enfiados em sacos plásticos,
eram levados a um outro lugar para serem incinerados.
Assim desapareceram do mundo Ana e Beto.
Para que seja possível recordá-las, e não esquecê-las, as
histórias foram contadas, em linguagem contida, por Bernardo Kucinski e
Cristina Chacel. Exercícios de memória, como na bela fórmula de Kundera: “A
luta da liberdade contra o Estado é a luta da memória contra o esquecimento.”
Assim, neste Natal, nos momentos de recolhimento, quando pensarmos no ano que
se foi e no que virá, talvez fosse de bom alvitre ler as palavras que eles
escreveram.
Mas o que valem as palavras? Foi a pergunta que se fez o
velho Leão-Leão, personagem de Isaac Babel num dos contos de Odessa. Ele
remoía, melancólico, a morte do bandido Benia Kric:
— O que valem as palavras? Benia estava aqui. Agora, não
está mais.
Como Ana e Beto. Ele e ela estavam aqui, não estão mais.
Foram pegos e trucidados por homens que agiam à sombra, e
cumprindo ordens, do Estado brasileiro. Os dois eram revolucionários num tempo
em que a palavra revolução tinha um certo significado. Viveram por ela e por
ela ofereceram o que tinham de melhor, as vidas.
Agora, ela e ele não estão mais.
Restaram, porém, a memória e as palavras.
Um dia, disseram a Eli Wiesel: “Os homens não mudam e
detestam se lembrar.” O velho respondeu: “É um problema deles. Eu não
esquecerei.” Ele tinha razão: em qualquer circunstância, resta-nos a memória,
que pode ser gravada em palavras, que então adquirem valor.
Como os antigos povos, que plantavam marcos para
assinalar territórios, as palavras de Bernardo e Cristina são marcos valiosos
bem fincados no território da memória, sinalizando roteiros para atuais e
futuras recordações.
Que esta crônica tenha igual sentido. Que ela seja um
pequeno marco a mais, e também uma oferta para Ana e para Beto, como se fora um
último presente de Natal.
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade
Federal Fluminense
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com
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