15.8.09

Favela

ANDREI BASTOS

Como qualquer outro grande agrupamento de pessoas – bairro, cidade, estado ou país –, a favela também resulta da necessidade humana básica de se viver junto aos semelhantes e familiarmente próximos. Por isso, ela igualmente constrói identidade e cultura próprias, da mesma forma que desenvolve suas regras de relacionamento comunitário, podendo, portanto, participar da gestão pública do espaço que ocupa, da cidade em que está inserida e daí em diante. Tanto para defender seus interesses específicos como para contribuir para a cidade ou país como um todo.

A única diferença a ser considerada com justiça entre a favela e as demais áreas populacionais urbanas é sua quase absoluta falta de recursos, de toda ordem. Para as pessoas que habitam a favela, tão humanas quanto as outras, antes de tudo falta cidadania.

Até hoje os moradores das comunidades pobres são tratados como incapazes de contribuir para a solução dos seus próprios problemas. Eles perdem muito com isso, claro, porque aumenta ainda mais a distância para a conquista da sua emancipação, embora chegar lá, ou em lugar não sabido, seja uma questão de pouco tempo diante do crescimento acelerado e maior da não-cidade em relação à cidade. Por outro lado, os outros, já cidadãos, perdem com isso a oportunidade de participar da construção de uma vida melhor para todos e, pior, diante do mito da violência marginal alimentado pela distância, pelos muros e pela crescente maioria de pobres, perdem também o sono.

A sociedade dos bem-nascidos continua sem enxergar como cidadãos seus semelhantes mais pobres e acha que na favela tudo se resolve com polícia – uma ilusão que dura pouco. O que consegue ver além faz apenas com que desperte alguma caridade em espíritos pasteurizados pela cultura da alienação, que dando esmolas acreditam estar pagando terrenos no céu ou comprando proteção divina contra assaltos e outras bandidagens.

Por mais que a luta pelos direitos humanos tenha avançado, no mundo e no Brasil, e que não aconteçam mais incêndios que destroem favelas inteiras ou remoções das suas populações para locais distantes e sem transporte público, e mesmo quando a polícia ganha asas brancas de pacificadora, os favelados continuam sem participar da elaboração e implementação das políticas públicas que lhes dizem respeito. Afinal, apesar das auréolas, a polícia continua impondo com suas armas uma paz não absoluta, permanentemente vigiada por ela e pelos bandidos.

Porque não buscar caminhos compartilhados, antes que seja tarde demais para conter a saciedade descontrolada dessa imensa fome de tudo? Porque não incorporar ao discurso civilizatório a palavra de quem nunca teve voz nem sobre seu próprio destino? Porque, simplesmente, não debater com as comunidades as soluções para seus problemas e, com isso, fortalecê-las e evitar que suas instâncias de gestão sejam corrompidas ou tenham sua atuação determinada por interesses eleitoreiros, por entidades assistencialistas ou pelo crime organizado?

Um mundo melhor e noites de sono tranquilo são mais possíveis sem polícia, pacificadora ou não. Basta abrir os olhos para a transformação da paisagem de gente.

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