21.11.09

“Isso é demência”

ANDREI BASTOS

Um capricho do destino fez com que eu conhecesse o abrigo Betel, para pessoas com deficiência, justamente no dia do meu último aniversário, em 28 de setembro. Foi a data que a assistente social Flávia Azevedo, da ONG Projeto Legal, marcou para minha ida à instituição. Hoje eu brinco a sério com Flávia, dizendo que se conseguirmos melhorar a vida dos abrigados do Betel, terá sido o melhor presente de aniversário da minha vida. Eu adotei essa causa.

Flávia me convidou porque participou da audiência pública “Plano Nacional pela Primeira Infância e as Crianças com Deficiência”, realizada em 4 de junho pela Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da OAB/RJ, e ficou conhecendo o verdadeiro potencial de quem equivocadamente é chamado de “deficiente”, assim como minhas posições diante das questões da inclusão social desse segmento.

A luz do dia era forte e o calor de um céu sem nuvens sobre ruas de terra e casas humildes nos levou, meio perdidos naquela malha urbana primitiva, até a construção que se destacava com seu muro branco bem conservado. Fomos recebidos com simpatia e levados para conhecer as instalações, todas limpas e cuidadas suficientemente. Os abrigados, na maioria encaminhados por instâncias do poder público, compunham um grupo de 35 adultos e outro de 15 crianças e jovens de até 18 anos, separados em dois alojamentos com dormitórios femininos e masculinos.

As conversas que tivemos com administradores e com algumas das funcionárias nos revelaram que o lugar sobrevive de parcos recursos públicos e doações de pessoas físicas e jurídicas, entre as quais se destaca uma escola de samba que doou até uma máquina de fabricar fraldas, e que a equipe, de aproximadamente 60 pessoas que se alternam no trabalho, é formada por voluntários que recebem apenas uma ajuda de custo e não tem capacitação para lidar com pessoas com deficiência.

Diante do grupo de crianças e jovens com variadas deficiências que se espalhava pela varanda do alojamento depois do almoço, sem atividade em curso ou prevista e com expressões meio apagadas de quem está sob o efeito dos psicotrópicos prescritos pelo psiquiatra voluntário, perguntei à funcionária que nos acompanhava se um determinado menino, que emaranhado nas próprias pernas e braços batia a cabeça no chão, teria sido diagnosticado como paralisado cerebral. Ela respondeu que não, que “isso é demência”.

Quando levei o caso adiante, algumas pessoas acharam que seria necessário denunciar e acionar o Ministério Público para interditar o local, que não passaria de um depósito de gente. É verdade que o lugar é isso mesmo, mas diante da argumentação de que se aquelas pessoas com deficiência não estivessem ali, sob um teto, com roupa, comida e uma cama para dormir, estariam sujeitas a maus tratos ou abandonadas nas ruas pelas próprias famílias, e que o correto seria direcionar os sentimentos de caridade e humanidade, que movem administração, equipe e doadores, para capacitação de pessoal e conscientização da questão real da pessoa com deficiência, todas concordaram em não cometer nenhuma “demência”.

Porém, o que mais preocupa nessa história é o fato de que estamos falando de Duque de Caxias, o segundo município mais rico do Estado do Rio de Janeiro e sexto do país, praticamente um subúrbio gigante da Cidade Maravilhosa. Diante disso, torna-se imperioso que trabalhemos para levar o processo de inclusão social das pessoas com deficiência para o interior, pois o que não existirá de medieval em matéria de inclusão nos municípios mais distantes e nos grotões do país? Além disso, como podemos aceitar que essas crianças e jovens e muitos outros iguais a eles, que nunca receberam nenhum estímulo para seu desenvolvimento cognitivo, muito ao contrário, sejam abruptamente colocados numa sala de ensino regular, por força de uma canetada? Isso não é inclusão social ou educação inclusiva, isso é demência.

***

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