4.11.09

Sem prorrogação

IVAN ALVES FILHO

Todas as pessoas reunidas naquela sala o aguardavam para dar início à reunião. O problema é que a noite caía e nada dele chegar. “Será que houve alguma coisa ?”, começavam a indagar, daqui e dali. Mas o fato é que a conversa prosseguia animada e isso ajudava a passar o tempo. E a espantar a preocupação.

Até que ele chegou. Alto, bem alto, mulato, corpulento, ele logo atraiu a atenção de todos. Impressionava pela sua alegria e, mesmo, uma certa jovialidade. Pois para mim, então um pré-adolescente conforme se diria nos tempos de hoje, ele era um velho. Mesmo assim, um velho bem jovial, esbanjando saúde. Estranho aquilo… Ele veio me cumprimentar e passou amistosamente a mão pela minha cabeça, quando alguém lhe disse que eu estava meio indisposto, comera em excesso…

Chegou pedindo desculpas. Apitava um jogo na praia - era doido por futebol - e houve prorrogação, daí o atraso. Estava vestido como juiz de praia, todo de preto, de sandálias, ainda salpicado de areia. O jogo tinha sido quase ali em frente, mas ele não contava com a prorrogação. “Queiram me desculpar, meus camaradas” etc. e emendou logo o assunto de interesse de todos.

Assim que a reunião teve inícío, eu fui para a janela do apartamento, localizado acima do prédio do antigo cinema Rian, na Avenida Atlântica.

A conversa era para gente grande, naturalmente. Eu me lembro que era ainda a velha Avenida Atlântica, bem menos larga do que ela o é hoje. Linda, com sua iluminação amarelada formando aquele colar de pérolas que os poetas tanto gostavam de cantar. E o mar sem fim, batendo na areia da praia. Bonito aquilo. Pra Dorival Caymmi nenhum botar defeito.

Fiquei ali um bom tempo, até praticamente encerrar a reunião. Pouco a pouco as pessoas foram se despedindo. Promessas de novos encontros, os tradicionais apertos de mão e tapinhas nas costas. Um clima de confraternização - ainda que eu desconhecesse então o real valor dessa palavra. Com algumas daquelas pessoas eu até tinha uma certa familiaridade. Outras, como aquele moço do uniforme salpicado de areia, eu conhecera naquele mesmo dia. Pouquíssimo tempo depois, veio o Golpe militar e as notícias sobre ele foram escasseando. Não só sobre ele, como também sobre muitos daqueles companheiros do meu velho ali presentes.

Até que um dia, sua morte seria manchete em quase todos os jornais. O amigo de meu pai caíra numa armadilha armada pela repressão em São Paulo. A polícia política não lhe daria tempo sequer de esboçar uma reação ou muito menos fugir.

Daquela vez, não houve prorrogação para Carlos Marighella.

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