10.1.10

Rever a anistia?

O Globo, Opinião, 07/01/2010:

Rever a anistia?

ALFREDO SIRKIS

Sou contrário à revisão da Lei de Anistia de 1979. Seria reviver uma guerra que terminou há trinta anos, criar um elemento de discórdia na relação com as Forças Armadas, trazendo polarizações do passado para complicarem o presente, que já tem suas próprias e suficientes complicações. Na época da anistia, a prioridade era fazer as Forças Armadas aceitarem a democracia e o poder civil, renunciarem ao exercício arbitrário do poder e não interferirem mais na vida política. Isso foi amplamente conseguido. Hoje, há outros desafios, de certo modo mais complexos: uma nova doutrina de defesa nacional, que incorpore a questão climática, que é a maior ameaça que paira sobre nós, a médio prazo. Envolver as Forças Armadas na defesa dos grandes ecossistemas brasileiros ameaçados –inclusive como exercício de nossa soberania sobre eles– no restabelecimento do seu próprio monopólio sobre o armamento de guerra, perdido para o narcovarejo e na proteção das fronteiras de eventuais desbordamentos em países vizinhos.

O paradigma no qual se discutem as questões de defesa e de segurança do Brasil, hoje, nada têm a ver com aquele da “guerra fria”, de trinta anos atrás. Sem dúvida, as torturas, execuções e desaparecimentos e a opressão do regime militar, sobretudo no período de 68 a 78, foram abjetas, deviam ser amplamente conhecidas e já o são. Fazem parte da nossa história. Não penso que sejam prioridades de nossa pauta política, jurídica ou mesmo jornalística atual, a não ser que desejemos um futuro pautado pelo passado.

As torturas e violações de direitos humanos que me preocupam são as do presente. A tortura continua a ser praticada –como já era antes do regime militar– como técnica de investigação policial. Também, é amplamente utilizada pelos traficantes que desafiam o estado de direito e exercem sua ditadura militar local sobre comunidades que dominam. É estranho, convenhamos, querer julgar, hoje, algum militar septuagenário ou sexagenário por torturas no DOI-CODI, há trinta e cinco ou quartenta anos, num sistema judicial que já libertou, por “progressão de pena” quase todos os bandidos que, há sete, anos torturam, esquartejaram e torraram no “forno microondas” o jornalista Tim Lopes.

Devemos nos preocupar e agir sobre as ameaças do presente, que são muitas, não reviver guerras passadas. Aquela foi militarmente vencida por eles e, depois, politicamente, por nós. Aqueles que travamos a luta armada contra a ditadura –agravando-a– e que cometemos erros políticos graves, entre os quais o de seguir uma ilusão ideológica que poderia ter levado a uma ditadura de outro tipo, não temos nem interesse nem autoridade para reabrir essa Caixa de Pandora. Sei que falo na condição de quem, por uma questão de sorte, não viveu a experiência terrível da tortura, nem teve um familiar “desaparecido”. As perdas que tive foram de companheiros e amigos mortos na luta que me repugnaria, hoje, reduzir ao papel de “vítimas”. De qualquer jeito penso que não faz sentido, trinta anos depois da anistia tentar revê-la. Percebo nisso, motivações políticas menores, inconsequêntes. Isso não deve prejudicar a investigação e a pesquisa histórica que, inclusive, não seriam beneficiadas pela crispação no relacionamento com as instituições militares.

Há uma questão, reavivada pela recentes revelações sobre o assassinado do ex-presidente chileno Eduardo Frei, que precisaria ser esclarecida definitivamente: as mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e Jango Goulart e, do ex-governador Carlos Lacerda. Esclarecer definitivamente quaisquer dúvidas sobre o acidente e enfermidades cardíacas que as causaram num período curto de tempo. Mas, isso nada tem a ver com uma revisão da Lei de Anistia, que, no que pesem suas imperfeições e desequilíbrios, hoje faz parte de nossa história.

ALFREDO SIRKIS é vereador e presidente do PV/RJ

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