18.10.11

Quem é essa mulher... por Paulo Totti


Quem é essa mulher, 36 anos depois

Por Paulo Totti, no Valor Econômico

Duas mulheres de fibra: Zuzu Angel Jones, nascida Zuleika, e Clarice Herzog, nascida Ribeiro Chaves. Da primeira, mataram-lhe o filho, Stuart Edgar. Da segunda, o marido, Vlado.

Naqueles tempos duros, a censura sufocava o choro, mas protestava-se por meio de metáforas, e algumas delas se alojaram entre as mais lindas da poesia brasileira. Chico Buarque e Miltinho, do MPB-4, num triste samba homenagearam Zuzu e lembraram o filho dela, morto aos 25 anos, em 1971. “Quem é essa mulher/ que canta sempre o mesmo arranjo:/ ‘Só queria agasalhar meu anjo/ e deixar seu corpo descansar’?”. Estilista famosa, costureira da sociedade carioca e, dizia-se, de Kim Novak, Liza Minelli e Joan Crawford, Zuzu tornou-se incômoda à ditadura. Moveu céus e terra, chegou à ONU com os reclamos pela recuperação do corpo do filho, torturado até a morte por oficiais da FAB na base aérea do Galeão. A identidade dos assassinos nunca foi revelada, nem encontrado o corpo de Stuart. Jogaram-no ao mar, dizia-se. Por isso, Chico fez mais os seguintes versos: “Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho:/ ‘Só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar’?”.

Aos 54 anos, em 1976, Zuzu morreu como personagem de novela. Seu Karmann Ghia capotou diversas vezes na estrada Lagoa-Barra, chocou-se contra a mureta de proteção e precipitou-se pelo barranco. A suspeita de sabotagem no sistema de freios do carro nunca foi apurada. Zuzu virou filme

Também protagonista involuntária daqueles tempos trágicos, dias, semanas, meses depois de Vlado ter sido assassinado nos porões do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, Clarice ouvia ameaças sempre que o telefone tocava: “Judia fdp”, “comunista”, “matamos um e vamos matar o resto”. Em sua porta havia sempre, dia e noite, um carro da polícia a bisbilhotar, intimidar. E Clarice Herzog virou música. “Chora a nossa pátria mãe gentil./ Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”, versos de João Bosco e Aldir Blanc na voz de Elis Regina.

Trinta e seis anos depois, Clarice está “À Mesa com o Valor”, no Spadaccino, acolhedor restaurante da Vila Madalena, em São Paulo, onde se cultiva a boa tradição da comida bolonhesa e que ela sugeriu para este almoço. Clarice está esperta e saudável. Sobreviveu.

- Quem é esta mulher Clarice Herzog?

- Fiz ciências sociais na USP. Mas me digo publicitária porque trabalhei 25 anos em agência de publicidade, 21 deles na Standard Propaganda, que virou Standard Ogilvy e hoje acho que é só Ogilvy. Fiz parte do board, fui vice-presidente. Depois criei minha empresa. Nunca redigi ou vendi anúncios, também não fiz pesquisa eleitoral. Pesquisa qualitativa é a minha especialização até hoje. Tenho experiência em posicionamento de marcas, levantamento de informações junto ao consumidor para traçar a estratégia de comunicação dos clientes, entre eles muitas multinacionais. As marcas têm vida, sabe? Se disser que sou pesquisadora de mercado, ninguém vai saber o que isso significa. É mais fácil dizer que sou publicitária. Meu pai morreu sem saber direito o que eu fazia.

Durante a faculdade na rua Maria Antônia, célebre na época por conflitos entre os esquerdistas da USP e os direitistas da Universidade Mackenzie, Clarice conheceu Vlado, que concluia o curso de filosofia. Casaram-se.

- E como estão seus filhos?

- Ivo faz 45 anos exatamente hoje. E o André, com 43, está na Índia neste momento.

André é funcionário da área de urbanização do Banco Mundial em Washington. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, fez mestrado e doutorado em Londres e Roterdã, e, a cada dois meses, passa três semanas na Índia, onde participa de um programa de urbanização de favelas. Há 11 anos só vem ao Brasil em férias.

Quando morreu, em 25 de outubro de 1975, Vlado tinha 39 anos. Clarice, 33. E os filhos, 9 e 7 anos. “Ivo, o maiorzinho, ficou muito mal, precisou de terapia durante anos. Tinha idade para entender algumas coisas, mas não entendia tudo. Vlado morreu num sábado. Contei para os garotos na manhã de domingo. Disse que tinha sido um acidente de carro, mas essa versão não durou meio dia. A confusão em casa, os amigos, o velório, o enterro, a polícia. Tive de revelar que ele fora assassinado, coisa terrível para uma criança. Polícia mata bandido, o pai era um bandido? Um dia Ivo perguntou: ‘O país do papai vai entrar em guerra com o Brasil?’ Ele tinha ouvido que os militares do Brasil estavam em guerra. ‘Por isso mataram meu pai?’ Os garotos sabiam que Vlado era filho de judeus, que nascera na Iugoslávia, e isso em casa, até então, era uma coisa natural.”

Vlado Herzog, como se sabe, nasceu em Osijek, na Croácia, que então pertencia à Iugoslávia ocupada pela Alemanha nazista. O casal judeu Zigmund e Zora Herzog fugiu para o Brasil em 1940, com o único filho, de 3 anos. Ao atingir a maioridade, Vlado naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Vladimir – “nome mais afinado com os trópicos”, dizia. Mas os amigos continuaram a chamá-lo de Vlado, como se fosse um diminutivo.

Ivo levou anos para recuperar-se do trauma. Com o ingresso familiar reduzido apenas ao seu próprio salário, Clarice cortou fundo as despesas, mas preservou o suficiente para o acompanhamento psicológico do filho.

Formado em engenharia naval pela Faculdade Politécnica da USP, Ivo fez MBA em logística nos Estados Unidos. Trabalhou nessa área até metade deste ano, quando resolveu largar tudo para dedicar-se integralmente ao Instituto Vladimir Herzog. Criado em 2009, o instituto, segundo seu site, pretende “contribuir para a reflexão e a produção de informação voltada ao Direito à Justiça e ao Direito à Vida”. Ao ato de seu lançamento compareceram o então governador de São Paulo, José Serra, e o ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi. Os hoje ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso gravaram mensagens de apoio. “O instituto é ideia do Ivo”. diz Clarice.

Gunnar, carioca robusto, cabelos e bigodes brancos, que chegou ao restaurante acompanhando Clarice, esclarece: “Ivo criou o instituto não para celebrar a morte do pai, mas para a celebração da vida dele, das coisas que Vlado fazia e pensava: direitos humanos, democracia, justiça, liberdade de expressão”.

Quem é Gunnar? Gunnar Cairoba, bisneto de alemães, neto de suecos e escoceses, filho de sueca e brasileiro, conheceu Clarice em 1977. Ele trabalhava na área de atendimento a clientes da MPM Propaganda, no Rio. E ela na Ogilvy, em São Paulo. Desde então estão juntos. Formado em administração de empresas, Gunnar hoje é responsável pela área administrativa da Clarice Herzog Associados. Vlado e Gunnar não chegaram a se conhecer.

Repórter: A dedicação de Clarice à memória de Vlado nunca criou problemas entre vocês?

Gunnar: Separo as duas coisas. Sei que esse espaço é da Clarice, que ela precisa desse espaço. Não interfiro, mas estou sempre do lado dela.

Clarice: Logo depois de começarmos a namorar, estávamos em Nova York, era o governo de Jimmy Carter. Eu disse para o Gunnar: “Vou a Washington fazer uma denúncia, você fica aqui. A morte do Vlado é meu problema”. E ele disse: “Se eu for ficar com você, é meu problema também”. E foi junto, deu força.

Somos quatro à mesa: Clarice, Gunnar, a fotógrafa Ana Paula Paiva e o repórter. Foi de Gunnar a sugestão do vinho tinto – um bem comportado Rupestro Úmbria 2009, leve mescla de merlot (80%) e sangiovese – para acompanhar o prato executivo do dia: ravióli de carne ao molho pesto genovês, com entrada de salada verde temperada com vinagre branco, mel e manjericão. Clarice pede tão somente insalata ficchi, uma salada verde com figos recobertos por fina crosta dupla de pão e farinha de trigo, e pequeninos cubos de ricota levemente picante, tudo encimado por uma flor comestível, violácea e saborosa, que Paula Lazzarini, a proprietária do Spadaccino, diz chamar-se capuchina. O repórter gostou do visual e substituiu a salada do menu executivo por meia salada de figos. Delícia!

Ivo e André nasceram em Londres, onde Vlado foi trabalhar na BBC e fazer um curso de documentarista de TV [o jornalista foi crítico de cinema no "Estado de S. Paulo", professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, e filmou "Marimbás", documentário sobre pescadores do Posto Seis, no Rio - "cinema verdade", como era moda]. Estavam em Londres havia dois anos e meio quando decidiram voltar. Era 1968. Clarice veio antes, de navio, com os filhos. Vlado viria em 15 de dezembro. Mas no dia 14 leu nos jornais: “Endurece a ditadura militar no Brasil”. No dia anterior saíra o ato institucional nº 5, o mais feroz dos atos que a ditadura publicou no “Diário Oficial” – houve outros, não documentados. Mas Vlado adiou a volta apenas por uma semana. Trabalhou então no “Estado de S. Paulo”, na “Visão” e em 1975 estava na TV Cultura.

Enquanto isso, Clarice iniciava sua vida de “publicitária”. “Cheguei no porto de Santos e duas amigas já me esperavam para dizer que tinham me arrumado emprego na Lintas, uma “house agency” da Unilever”.

Estava há um ano na Ogilvy, quando Vlado foi morto. Dias depois, Jimmy Benson, o diretor da empresa para a América Latina, chamou-a para conversar. “Confesso que tive medo, era uma multinacional americana e eu a viúva de um cara que a polícia dizia ser membro do Partido Comunista Brasileiro…” Benson foi direto ao ponto: “Quero lhe dizer que, se quiser sair do Brasil, consigo espaço para você em qualquer lugar. Nossa agência está em muitos países do mundo”. E comentou: “É impressionante a gente ver este país colorido, alegre, pessoas na rua cheias de vida, e não se sabe que nos bastidores acontecem essas brutalidades”. Clarice preferiu ficar. E ficou por mais 20 anos na Ogilvy.

“Foram comoventes as manifestações de solidariedade. Pessoas que apenas encontrava na porta da escola quando ia levar meus filhos apareceram lá em casa. Velhos amigos reapareceram. Colegas de Vlado se mobilizaram no sindicato, nas redações dos jornais. Teve também o outro lado, pois alguns que considerava amigos de repente sumiram. É a vida.”

Em outubro de 1975, amigos de Vlado e jornalistas que tinham trabalhado com ele na revista “Visão” começaram a ser presos. Vlado previu que seria o próximo. Já era sexta-feira e Clarice sugeriu que, terminado o trabalho de Vlado na TV, colocado o noticioso da noite no ar, casal e filhos fossem diretamente para seu pequeno sítio em Bragança Paulista e só voltassem na segunda de manhã. Clarice iria de carro apanhá-lo na TV. “Ser preso no fim de semana é um problema. Você não consegue contato com ninguém, o advogado está viajando, está tudo desarticulado”, comentou com Vlado. Mas a polícia chegou antes. Um dos presos, torturado, indicara o endereço de Vlado. “Anoitecia quando os caras bateram lá em casa. Não se identificaram e disseram que procuravam o Vlado para encomendar um trabalho de ‘free lancer’, queriam que fotografasse um casamento no fim de semana. Falei que ele não era free lancer, tinha emprego fixo na TV Cultura e não era fotógrafo. Falaram: ‘Mesmo assim, precisamos falar com ele. Onde é a Cultura?’ Disse que sabia ir até lá, mas não tinha o endereço. Eles disseram: ‘A gente se vira’, e foram embora”.

Clarice ligou imediatamente para o marido que estava pronto para colocar o noticiário no ar. “Eles etão indo para aí, mas acho que chego antes”. Pegou os filhos e partiu. Chegou na TV e os “caras” já estavam lá. Os filhos testemunharam a discussão com os policiais – já aí assumidos – e ficou claro que estavam ali para prender seu pai. A intervenção de colegas, telefonemas “para a central”, “consultas às autoridades”, resultaram na suspensão da prisão imediata e o compromisso de Vlado comparecer ao DOI-Codi no dia seguinte. Vlado dormiu em casa e às 8 da manhã chegou ao Paraíso, o bairro onde ficava o prédio do DOI-Codi, na rua Tutoia. Pouco depois do meio dia estava morto.

Ainda na manhã de sábado, Clarice teve de contar para dona Zora que o filho dela estava preso. Clarice lembra que procurou não assustar a sogra, disse que não era como na época do nazismo na Croácia. Apreensiva, Dona Zora – o marido, Zigmund, morrera em 1972 – foi dormir na casa de um irmão. “Às 11 da noite, quando apareci na casa do irmão dela, nem precisei abrir a boca. Ela me viu e começou a chorar.” Dona Zora, segundo Clarice, foi de grande coragem e dedicação à nora e aos netos. “Todo o amor que tinha para o marido e o filho transferiu para nós. Cuidou de nós até morrer, em 2009. Quando casei com Gunnar, ela passou a chamá-lo de genro.” Gunnar acrescenta com bom humor: “Casado com minha nora só pode ser meu genro, não é?”

Clarice ganhou na Justiça um rumoroso processo de responsabilização do regime militar pela prisão, tortura e morte de Vlado. Seria o caso óbvio de ação indenizatória. Clarice, porém, não queria reduzir a perda do marido a uma questão financeira. “Recebe a indenização e o processo acaba? E quem matou fica livre?” Além disso, admite hoje, não lhe importava que a considerassem judia, o que ela não devia era reforçar a maledicência do preconceito: “O corpo nem esfriou e a judia já vai em busca do ouro”.

Clarice não tem ascendência judaica. É paulistana do bairro de Pinheiros, filha de católicos, o pai um engenheiro da construção civil, e a mãe, costureira. Na história familiar de Clarice há um episódio de violência e morte na luta contra ditaduras. Um tio, irmão de sua mãe, preso durante o Estado Novo no presídio Maria Zélia, em São Paulo, organizou a fuga com outros presos políticos. “Alguém dedurou e eles foram simplesmente metralhados. Meninos de vinte e poucos anos! Meu avô ficou de cabelo branco de um dia para outro; entrou com processo, mas resultou em nada. Cresci com ódio do Getúlio.”

Dois advogados que Clarice consultou em São Paulo, para que também a morte de Vlado não ficasse sem punição, aconselharam-na a desistir de ações contra o regime. Um deles escapuliu-se à responsabilidade de enfrentar os militares fazendo-se de radical: “Os crimes são tão hediondos que teremos que esperar um novo Tribunal de Nuremberg”.

Foi então que o jornalista Zuenir Ventura, colega de Vlado na “Visão”, levou-a a conversar com Heleno Fragoso, no Rio. O veterano criminalista aceitou a causa e convocou para auxiliá-lo três jovens advogados especialistas em processo civil – Samuel Mac Dowell de Figueiredo, Marco Antonio Barbosa e Sérgio Bermudes [ver entrevista deste último em "À Mesa com o Valor", Caderno Eu & Fim de Semana, edição de 25, 26 e 27 de fevereiro de 2011]. Em 1978, dois juízes da 7ª Vara da Justiça Federal, João Gomes Martins Filho, de 70 anos, em seus últimos dias de magistratura, e o jovem de 32 que o substituiu, Márcio José de Moraes, deram ganho de causa a Clarice. O Tribunal Federal de Recursos. confirmou a sentença. Agora, Clarice bate às portas do Tribunal de Haia. A ação é para condenar o governo a investigar e punir os responsáveis pela morte de Vlado, atribuída pela polícia a “suicídio”.

- Por que não usou a Justiça brasileira?

- Tentei usar, mas uma juíza considerou coisa já decidida em função da Lei de Anistia, sancionada em plena ditadura, 1979, pelo general João Figueiredo. A lei é uma aberração!

Já são mais de três horas e foi servida a sobremesa da fórmula executiva: musse de tourrone, frutas cristalizadas, mel, calda de frutas vermelhas. Clarice, que declinou do sorvete, precisa ir trabalhar. “Trabalho 12 até 13 horas por dia. Hoje, vou sair mais cedo, pois é o aniversário do Ivo.”

Clarice sempre trabalhou muito e desde muito cedo. Fez o ginásio no Colégio Fernão Dias Paes, seguido do curso técnico de química industrial. Mas já traduzia livros de inglês e francês, para uma pequena editora, com a ajuda de dicionários e da troca de ideias com duas amigas. Na faculdade de ciências sociais, pela manhã dava expediente como química industrial; à tarde ia para a editoria internacional do jornal “Última Hora”, onde trabalhou por dois anos, e, à noite, faculdade.

- O que acha da Comissão da Verdade?

- Sou absolutamente a favor da abertura de todos os arquivos. Mas defendo a punição dos culpados. Não anistio os torturadores. As pessoas que foram presas, assassinadas, estavam reagindo a um estado de exceção, a um golpe militar que derrubou um presidente eleito. Na Argentina, no Uruguai, no Chile, os golpistas foram punidos. Só no Brasil há perdão para a tortura política, um crime de lesa-humanidade, imprescritível.

Fonte: Luis Nassif Online

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