23.4.12

Questão de saúde pública

O Globo, Outra Opinião, 22/04/2012:

TEMA EM DISCUSSÃO: Internação compulsória de dependentes crônicos de crack

Questão de saúde pública

MARGARIDA PRESSBURGER

A política de combate ao crack no Rio de Janeiro se revelou um completo fracasso, como já prevíamos quando de seu polêmico e midiático início, há quase um ano. As imagens recentes de um caminhão baú transportando dezenas de dependentes químicos da cracolândia da Central do Brasil até os abrigos, ou melhor, até as casas de recolhimento da prefeitura, foram a mais completa tradução da derrota frente ao crack das medidas equivocadas de recolhimento compulsório de crianças, adolescentes e adultos viciados, adotadas pelo município.

Sua continuidade comprova apenas a nossa suspeita de que esteja sendo implementada com o objetivo de higienizar a cidade às vésperas de importantes eventos esportivos e católico.

No ano passado, em meio a um debate na sede da OAB-RJ, o secretário municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, defendeu a política por ele adotada, dizendo que se encontrasse um filho seu na cracolândia o pegaria pelo braço e o internaria, mesmo a contragosto, em uma das melhores clínicas que o dinheiro dele pudesse pagar. Ao ouvir a sua confissão, eu perguntei: por que, então, as crianças e os adolescentes dependentes não estavam sendo internados nas melhores clinicas que o dinheiro público pode pagar? A interrogação era pertinente porque, na ocasião, o governo federal destinou recursos da ordem de R$ 2,4 milhões para políticas de combate ao crack no Rio de Janeiro, assim como recentemente anunciou a liberação de R$ 3,2 milhões com o mesmo fim para o município de São Paulo.

Aterrorizada pela violência e cerceada no seu direito de andar com tranquilidade na cidade em que vive, a população quer que alguma coisa seja feita. Concordo. Alguma coisa já teria que ter sido feita muito antes da véspera da Copa do Mundo, das Olimpíadas e da Jornada Mundial da Juventude Católica. Alguma coisa teria que ter sido feita há 30 anos, quando o menino de rua pedia um trocadinho para comprar cola. Da cola ao crack foi um longo caminho ignorado pelos governos.

Alguma coisa precisa ser feita agora. E não é recolher viciados e levá-los para locais que não curam ninguém. Primeiro, porque ninguém se cura de uma dependência química se não quiser. Segundo, porque não há nada nesses locais que incentive alguém a se livrar do crack. São casas em que os dependentes vão ficar três, quatro, cinco ou seis meses, se não fugirem antes, até serem devolvidos às calçadas e às cracolândias.

O crack é terrível. Não será derrotado com políticas de enxugar gelo e de colocar dedo em bolinha de mercúrio, a exemplo de recolhimento em abrigos truculentos e posterior abandono. Talvez o seja pelo abrigamento e acolhimento. Pelo cuidado com as crianças e os adolescentes que não foram cooptadas pelo tráfico, ainda uma das maiores agências de emprego do Rio de Janeiro.

O município insiste em jogar dinheiro pelo ralo, em limpar as ruas. Esquece que crack não é assunto de xerifes, mas de médicos. É questão de saúde pública. Livrar as nossas crianças desse destino terrível é assunto de Estado e deve ser planejado.

MARGARIDA PRESSBURGER é presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e representa o Brasil no Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU.

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