Uma garota Down
O
Globo, Opinião, 01/05/2013:
Uma garota Down
ANDREI
BASTOS
Olhos
que nem sei verdes ou azuis brilhavam tanto no sorriso do rosto inteiro e me
surpreenderam docemente quando toquei minha cadeira de rodas para a porta do
elevador do shopping. Ouvi o “oieeee!” esticado com o pescoço por uma cabecinha
dourada de cabelos cacheados e olhinhos apertados. Respondi com um “oiii!” de
incontido entusiasmo, pois poucas vezes fui cumprimentado com tanta simpatia.
A
garota perguntou em seguida: “Tudo bem?”, e eu respondi: “Tudo. E você, como
vai?”. A resposta veio como um vento de felicidade e orgulho: “Eu vou bem,
estou trabalhando aqui!” e, estufando o peito, ela me mostrou o crachá. Em
seguida, numa mudança brusca, mas suave, de tom, completou: “Sou terceirizada”.
Seu ar repentinamente triste me deixou pensativo.
Por quê
a alegria dessa garota com síndrome de Down, que eu conheço há alguns anos, não
é completa? Por que ela não tem direito à felicidade inteira do seu emprego?
Sem
levar em consideração a possibilidade de fraude que a intermediação da mão de
obra com deficiência cria, como no episódio recente que envolveu uma montadora
de automóveis e conhecida organização social, com multa de R$ 400 milhões
determinada pela Justiça, a terceirização é, para as pessoas com deficiência,
que podem ser usadas mais facilmente em esquemas ilícitos, um cruel fator de
discriminação.
Sem
levar em consideração a possibilidade de enriquecimento de instituições e
indivíduos que se dediquem à intermediação da mão de obra com deficiência, em
evidente desrespeito à dignidade humana, a terceirização é, para as pessoas com
deficiência, que podem ser usadas inescrupulosamente em proveito de outros, um
cruel fator de segregação.
Como
disfarce para procedimentos ilícitos ou exploradas por uma mais-valia dobrada
nos guetos dos intermediários, a mão de obra com deficiência não pode dizer que
exerce o direito ao trabalho preconizado no Artigo XXIII da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Para
que a garota minha amiga e todas as pessoas com deficiência possam se
considerar incluídas socialmente, é necessário que se dê fim à desfaçatez da
terceirização em que se vende bondade, e os profissionais com deficiência sejam
empregados diretamente nas empresas, sem a desculpa de que requerem uma atenção
especial para a qual os empregadores não estão preparados. Se as empresas
precisam de preparo, que usem as instituições especializadas para treinar seus
quadros e adequar seus ambientes e assumam sua responsabilidade na sociedade.
Finalmente,
para que o brilho dos olhos que nem sei verdes ou azuis da garota com síndrome
de Down não se apague, também é preciso acabar com os projetos de lei de má-fé que
sempre estão à espreita para roubar direitos já conquistados e promover o retrocesso,
como o Projeto
de Lei nº
112/2006, do senador José Sarney que, além de reforçar a terceirização, reduz o
número de contratações de pessoas com deficiência e confina milhares delas em
oficinas de trabalhos manuais e artesanato.
Andrei Bastos é
jornalista.
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