21.3.07

Um Brasil para todos nós

Jornal Terceiro Tempo, edição 355, 16 a 31/03/2007:

O jornalista Andrei Bastos concedeu esta entrevista ao Terceiro Tempo sobre as reivindicações do movimento dos deficientes físicos do Brasil.

Andrei: quantos milhões de deficientes o Brasil possui? Existe um levantamento preciso?

Antes de responder é preciso fazer uma importante correção, que não é apenas uma questão de semântica: não devemos dizer "deficientes" e sim "pessoas com deficiência". O motivo é que não podemos atribuir um valor, que a palavra "deficiente" contém, ao desempenho pessoal ou profissional de alguém em razão de alguma deficiência. Realmente é difícil encontrar uma palavra que defina com precisão e justiça tal condição, em qualquer idioma. Creio que aos poucos, e interiorizando conceitos, a gente chega lá.

Agora respondendo à pergunta, no Censo 2000, o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas indicou que 14,5% da população brasileira tinham algum tipo de deficiência, o que dá 24,5 milhões de pessoas e coloca a impossibilidade de se ignorar este contingente.

Os deficientes físicos começaram a se organizar há quanto tempo no Brasil? É possível fazer um histórico de sua luta pela dignidade e recuperação/ampliação da cidadania?

A proteção legal das pessoas com deficiência tem início em 17 de outubro de 1978 com a Emenda Constitucional número 12, de autoria do então deputado federal Thales Ramalho, que, a despeito de suas poucas palavras e de seu caráter genérico, foi muito importante porque reconheceu a existência civil dessas pessoas ("É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, especialmente mediante: I - educação especial e gratuita; II - assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do País; III - proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e salários; IV - possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos").

Depois da iniciativa de Thales Ramalho, a primeira lei abrangente e completa de defesa dos direitos das pessoas com deficiência brasileiras é a 7.853, de 24 de outubro de 1989, no governo de José Sarney, que "dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências". Sua idealizadora, e primeira dirigente da CORDE, foi Teresa Costa d'Amaral, que mais tarde, em 1998, criou o IBDD - Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência, no Rio de Janeiro (www.ibdd.org.br). O IBDD é uma organização não governamental, filantrópica, que vive de prestação de serviços e contribuições de empresas privadas, sem uso de dinheiro público.

Antes dessa lei, existiam no Brasil muitas instituições voltadas para o segmento, mas todas de natureza assistencial. Destacam-se nesse período, e depois dele, o Instituto Benjamin Constant, fundado pelo Imperador em 17 de setembro de 1854 como "Imperial Instituto dos Meninos Cegos", o INES - Instituto Nacional de Educação de Surdos, fundado em 26 de setembro de 1857 pelo Imperador e pelo educador francês Eduard Huet como "Instituto Nacional de Surdos-Mudos", e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), criada no Rio de Janeiro no dia 11 de dezembro de 1954 e que, em 1989 já contava com mais de 200 unidades espalhadas por todo o país. Depois da lei 7.853, surgiram outras tantas entidades, tanto no âmbito do Estado quanto na sociedade civil, na forma de instituições governamentais ou Ongs quase sempre dedicadas a deficiências específicas. Portanto, como aquelas instituições mais antigas tinham caráter profundamente assistencialista, o correto é dizer que a luta pela emancipação e inclusão social das pessoas com deficiência brasileiras começou em 24 de outubro de 1989, embora há apenas cinco anos, aproximadamente, a lei 7.853 tenha tido sua existência percebida e considerada pela sociedade.

Hoje podemos identificar duas vertentes no Movimento das Pessoas com Deficiência no Brasil. Uma, de reivindicação política e social, tem como foco a luta pela conquista da cidadania plena e é formada por associações e instituições como o IBDD e, outra, que age no sentido da assistência e da afirmação individual e é representada, principalmente, pela APAE e pelo CVI, sendo que este último também alcança a questão da cidadania.

Uma das reivindicações do movimento implica a adoção de um Estatuto da Pessoa com Deficiência. O que vem a ser isso?

A bem da verdade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência não é uma reivindicação do Movimento ou das pessoas com deficiência de modo geral. Quem primeiro teve essa idéia infeliz foi o senador Paulo Paim, do PT, que parece ter mania de estatuto. Agora mesmo está sendo vigorosamente combatida na Câmara sua proposta de Estatuto da Igualdade Racial. É tudo um grande equívoco, ou má-fé absoluta. Afinal, estatutos se originam nos grupos de indivíduos que resolvem estabelecer regras comuns para a existência de seu grupo e, com a concordância de todos, estabelecem seus direitos e deveres. Como não foi assim que aconteceu, só podemos classificar tal iniciativa como boa-fé equivocada ou oportunismo político mesmo.

Além disso, outra vez ressaltando que não se trata de uma discussão semântica, o conceito de estatuto incorporou, independente de seu significado real, a característica de expressar a tutela de incapazes, coisa que as pessoas com deficiência estão longe de ser, pois a maioria delas tem qualificação intelectual e profissional, estuda ou trabalha e é perfeitamente capaz de lutar pelos seus direitos, não precisando que ninguém o faça por elas. Até podemos admitir que seja exercida tutela com crianças e adolescentes e com idosos, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso, já que estas são pessoas que, pela idade ou pela condição física são incapazes de lutar pelos seus direitos. Elas são exceções e, como tal, podem receber tratamento excepcional.

Ao contrário do que aparenta, e no sentido inverso de todas as conquistas obtidas até agora, o Estatuto da Pessoa com Deficiência representa um retrocesso, na verdade reforçando a discriminação e prejudicando de vez o processo de inclusão social e pleno exercício da cidadania pelas pessoas com deficiência.

Outra grande preocupação concerne o problema dos transportes...

Sim, e não é apenas uma grande preocupação. A questão dos transportes coletivos é a primeira barreira a ser vencida. Sem ter respeitado seu direito humano fundamental e constitucional de ir e vir, as pessoas com deficiência não podem estudar, trabalhar ou ter lazer. A desobediência sistemática às leis que determinam a adaptação dos ônibus e outros meios de transporte são, na verdade, verdadeiro crime contra a humanidade e deveria ser punida com máximo rigor. Esta é a primeira linha de combate das pessoas com deficiência e é preciso sermos intransigentes com esse desrespeito praticado pelas empresas de ônibus, que são concessionárias de um serviço público e, por isso, obrigadas a atender as necessidades de todos os cidadãos.

Os deficientes vêm reivindicando, igualmente, uma Lei de Cotas. Explique isso também.

Em tese, a lei de cotas é tão auto-discriminatória quanto o estatuto. Mas existe uma diferença que começa pela questão conceitual, já que uma lei ordinária integra a Constituição, que é o estatuto de todos os cidadãos, reduzindo seu caráter estigmatizante e possibilitando que seja aceita como instrumento de aceleração do processo de inclusão social. Já existe lei de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho e como as empresas têm a alternativa de patrocinar cursos profissionalizantes, diante da eventualidade de não verem atendidas suas necessidades de contratação de profissionais, o segmento obtém aí a conquista da qualificação profissional. Na Educação, o problema é a falta de acesso, tanto por questões do espaço físico como pela falta de métodos de ensino adequados e professores preparados.

A experiência de outros países tem ajudado os deficientes brasileiros na formulação de políticas sociais, cidadãs? Dê exemplos.

A rigor, o maior exemplo foi dado pelos EUA, e por força de uma grande tragédia. As mudanças radicais começaram a acontecer quando os soldados que lutavam na guerra do Vietnã, heróis nacionais, regressaram para casa mutilados e com grande prestígio político. Prestígio político que era ainda maior em vista da impopularidade da guerra, questionada por toda a sociedade americana de então. Com o ânimo reforçado pela contestação da sociedade, os soldados voltavam pra casa exigindo seus direitos por uma cidadania plena e tiveram suas reivindicações atendidas pelo governo que, tanto quanto o resto da sociedade com grande sentimento de culpa, não tinha outra saída. Dessa maneira as pessoas com deficiência dos EUA conseguiram fazer com que a acessibilidade material e imaterial se integrasse à sua cultura, oferecendo para o mundo um belo exemplo de sociedade para todos.

Depois dos Estados Unidos, podemos citar Canadá, Austrália, Reino Unido, Japão, Nova Zelândia, Itália e Espanha como países que se destacam no atendimento às necessidades especiais das pessoas com deficiência. A Espanha oferece uma história interessante de processo de inclusão social: de início, para favorecer as pessoas cegas, o governo entregou a administração das loterias para elas. Com o tempo os cegos espanhóis ficaram tão ricos que abriram as loterias para a participação de pessoas com outras deficiências, que também ficaram ricas. Ou seja: nada como ser pessoa com deficiência espanhola hoje em dia.

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