1.5.08

Tio Júlio

IVAN ALVES FILHO

Tudo que eu sabia sobre ele se resumia nisso: tratava-se de um velho comunista que acabara de chegar de Santiago do Chile. Isso se dera um pouco antes do golpe desfechado por Pinochet, em setembro de 1973.

Magro, aparentando ter menos de 60 anos (e de fato tinha, conforme me inteiraria depois), era uma pessoa extremamente afável. Doce. Por conta também dessa característica de sua personalidade, mobilizou o PCB no exílio, atraindo para sua política os mais variados setores das chamadas esquerdas. Paciente, trabalhador, foi abrindo novos espaços, lançando os alicerces da generosa tática de alianças do Partido contra o regime militar. Deu certo, e o PCB passou a aglutinar a esquerda lá fora.

Para aqueles que residiam em Paris, ele era simplesmente Júlio. Também chamado de Titio por quase todos nós. Bom de papo, como se diz, cativava as pessoas com seu agudo senso de humor e alegria de viver. Confesso que aprendi muito com ele. “Mais vale um idealismo criativo do que um materialismo obtuso”, disparou certa vez esse marxista heterodoxo. Nunca mais me esqueci disso. Todo o poder à criatividade, então? Tenho saudades ainda hoje, Júlio, das nossas conversas parisienses, dos passeios que costumávamos dar pelas amplas avenidas apinhadas de gente, apesar do intenso frio que castigava a cidade na maior parte das vezes. Ele era o Júlio, membro do Partido, e isso bastava como apresentação.

Mas, certo dia, acabei conhecendo seu verdadeiro nome. Eu conto como foi. O Partido me remeteu uma correspondência sigilosa, a qual tratava da morte, nos porões da ditadura militar, do companheiro Célio Guedes. Vetereno militante do PCB, Guedes integrava o esquema que dava cobertura a Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Era homem da total confiança da direção central do Partido. E estava dito nessa correspondência — que trazia, inclusive, um laudo médico — que eu deveria encaminhá-la ao Júlio. Foi o que eu fiz.

Raras vezes na vida eu vivenciaria um momento tão duro como aquele. É que eu nunca poderia imaginar que Júlio fosse irmão de Célio. Que ele fosse, na realidade, Armênio Guedes. Ou seja, aquele respeitado dirigente que aderira ao PCB nos idos de 1935, na Bahia. E que tivera como companheiros de célula, em sua primeira reunião partidária, homens como Carlos Marighella e Edison Carneiro.

Personagem de romance, Armênio fora retratado na trilogia Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado. E Armênio era ainda um dos poucos — hoje, o único — sobrevivente da célebre Conferência da Mantiqueira, que indicara Prestes para a secretaria-geral do PCB, quando ele ainda se encontrava nos cárceres do Estado Novo. Mais: com Astrojildo Pereira — fundador do partido, em 1922 — dirigira algumas das publicações teóricas e culturais mais importantes da esquerda, como fora o caso da revista Estudos Sociais. E ainda: fora um dos redatores — se não o principal redator — da emblemática “Declaração de Março” de 1958, quando o antigo PCB incorporou definitivamente a democracia ao seu ideário de mudança social.

Tendo vivido na União Soviética por três anos, na primeira metade da década de 50, Armênio amargara a clandestinidade desde praticamente o começo de sua vida dentro do Partido, dos tempos heróicos da Aliança Nacional Libertadora e da insurreição de Novembro de 35 à luta contra a ditadura dos generais.

Armênio Guedes viveu sempre no olho do furacão. Mas para mim, ele é, acima de tudo, um grande e querido amigo. Alguém que influiu muito, por sua retidão de caráter e dedicação a uma causa, na formação de mais de uma geração de revolucionários e democratas.

Armênio, Titio ou Júlio, o que importa é que o meu amigo está completando 90 anos nesse mês de maio — mês das flores na França e dos trabalhadores em todo o mundo. Noventa anos de existência. Talvez ficasse dito melhor assim: 90 anos de luta, coerência e dignidade. O que dizer mais? Talvez isso: muito obrigado por tudo.

* Fonte: Site do PPS

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