10.1.10

Soldados, sentido!

ANDREI BASTOS

Verdadeiro Forrest Gump da luta contra a ditadura militar brasileira, em especial da luta armada, estive envolvido tanto no episódio do sequestro do avião relatado no artigo de Silvio Tendler, publicado no Globo em 08/01/2009, quanto nos que alimentam o equívoco de Alfredo Sirkis de dizer, em nome dos que travaram a luta armada, no seu artigo do dia 07/01/2009, também no Globo, que “não temos nem interesse nem autoridade para reabrir essa Caixa de Pandora”. Ora, só eu conheço várias pessoas que travaram essa luta e pensam diferente, inclusive assinando o manifesto “Contra anistia a torturadores”, citado por Tendler, e, de mais a mais, interesse e autoridade para reabrir o que um medo infundado chama de “Caixa de Pandora” qualquer cidadão consciente e votante tem, a partir de 16 ou 17 anos, nossas idades na época.

Foi engraçado ver os “imbecis fardados” driblados pela mãe do Silvio, que por via das dúvidas também queimou os rolos de filmes com desenhos animados tchecos e poloneses que eu descolara nas embaixadas e emprestara a ele, chegarem a um aparelho na Rua Voluntários da Pátria para capturar um perigoso agente soviético chamado Andrei. A decepção certamente foi imensa, pois no endereço morava minha família, eu era o mais velho de seis irmãos, com 17 anos, e tinha me mandado ao saber que os nomes do meu grupo de cineclubistas tinham caído por causa do nosso companheiro sequestrador.

Assim como Silvio, eu também não tinha nada a ver com o sequestro do avião e resolvi me apresentar à Aeronáutica para enfrentar o que pudesse acontecer, pois assim evitaria que quaisquer “imbecis fardados”, ou não fardados, que tinham apenas um nome russo para caçar, acertassem no que não viram.

A barra que enfrentei foi leve, sem tortura, mas com prisão domiciliar e proibição de voltar para a escola, onde eu cursava o segundo grau e poderia me perder na subversão e levar outros jovens comigo. O coronel da Aeronáutica responsável pelo inquérito e pelo corretivo que me foi aplicado, que se concluiu com um serviço militar obrigatório, foi o primeiro soldado que me pareceu honrar a farda ao me convencer, por intermédio dos meus familiares, de que seria recomendável que eu me apresentasse a ele, pois os outros estavam caçando o nome russo e iriam atirar primeiro e perguntar depois.

Sentido!

Ironicamente, dei baixa do serviço militar promovido, com menção honrosa, e com tudo aprendido sobre manipulação de armas, do tiro ao alvo à desmontagem e limpeza. Com essas credenciais, acabei sendo um candidato natural para atuar na linha de fogo da luta armada. Alfredo Sirkis foi encarregado de me convocar, numa conversa cheia de arroubos e bravatas pelas ruas de Botafogo, e eu, com toda a dificuldade que a imaturidade e o machismo juvenis poderiam criar, escolhi ficar na retaguarda, pois achava a correlação de forças absolutamente desfavorável e acatara o argumento do meu pai – economista, jornalista e antigo militante do Partidão – de que a boa fase econômica afastava nossos possíveis seguidores.

Em 1971, por conta do apoio que dava a meus amigos guerrilheiros, fui preso novamente, dessa vez numa barra pesada. Levado no meio da noite para o DOI-CODI da Barão de Mesquita, outra vez eu parecia peixe grande por causa das amizades. Talvez para mostrar serviço aos empresários patrocinadores, certa tarde me tiraram da cela, algemado e encapuzado obviamente. Estranhei passar direto pela sala da porrada e não descer para a geladeira e, depois de subir outros lances de escadas, estranhei mais ainda ao me ver num escritório atulhado de móveis velhos de verniz escuro, máquinas de escrever antigas e militares uniformizados. Mandaram que eu sentasse diante da mesa de um deles e o sujeito começou a fazer perguntas burocráticas, como nome completo, endereço etc. Fez algumas outras perguntas sobre militância e ligações com organizações guerrilheiras e me deu várias folhas de papel para assinar. Sem chance de ler tudo, consegui pescar alguma coisa e vi que assinava confissões de participação em diversas ações armadas. O que fazer? Melhor assinar e ir para um tribunal, mesmo fajuto, do que entrar para a lista de desaparecidos.

Algum tempo depois fui transferido para a PE da Vila Militar, em Realengo, onde continuei na pior. Outra tarde, outra saída da cela, outra vez diante de uma mesa de trabalho de quartel. Depois de esperar que eu terminasse a refeição de oficial que me servira, o coronel de aparência durona pousou a mão sobre uma pilha de papéis que estava sobre a mesa, disse que era meu depoimento no DOI-CODI, perguntou se eu sabia o que ele pensava de tal documento e, em seguida, jogou tudo na lata de lixo. Depois disso e de ouvir o militar dizer que era oficial do Exército Brasileiro e não compactuava com o que acontecia na Barão de Mesquita, fui levado para uma cela coletiva e solto uns 15 ou 20 dias depois. Ao desprezar a farsa do meu depoimento e se apresentar como militar a serviço do país e não como um dos seres abjetos dos porões da repressão, este coronel me pareceu outro soldado a honrar a farda que vestia.

Sentido!

Além dos exemplos acima, de militares envolvidos diretamente com a repressão política, antes, durante e depois do período de exceção, até os nossos dias, são incontáveis os casos de soldados que honram suas fardas, certamente a maioria, e a eles presto continência. Acrescentando-se a isso o fato de que inúmeros militantes da luta contra a ditadura, armada ou não, também eram militares, como pode a punição a torturadores ser antimilitarista? E que me desculpem os olhinhos arregalados do ministro da Defesa, que deixam passar algo de patético, com ou sem fantasia de Indiana Jones, mas os militares brasileiros que honram suas fardas deveriam ser os primeiros a tirar tais crimes e criminosos das latas de lixo dos quartéis e colocá-los no banco dos réus e no lixo a ser conhecido pela história.

Soldados, sentido!

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