1.10.09

Sonhando com os pés no chão

IVAN ALVES FILHO

O líder camponês Hilário Pinha, um exemplo de dedicação à causa do socialismo e das liberdades, fez um comentário, há alguns anos, que nunca esqueci. Para ele, duas questões deveriam pautar nossas ações, no tocante ao processo de transformação da sociedade. A primeira delas tinha que ver com o programa que sinalizaria nossa atuação. A segunda, com os instrumentos que permitiriam a aplicação desse mesmo programa.

E é em homenagem a ele que vou tentar esboçar, ainda que esquematicamente, essas duas questões.

a) Programa. Todos nós, da chamada esquerda (hoje um termo mais sentimental do que operacional, vamos reconhecer de imediato), vivemos o fim de uma época. E uma pergunta nos angustia. Qual seja, o que fazer após a Queda do Muro e o fim da União Soviética? Do esgotamento da política de classe contra classe? Do fim dos nossos paradigmas mais caros?

Essas são as partes mortas do nosso passado. Mas existem as partes vivas. Assim, é preciso que se leve em conta que, se o Muro de fato caiu, alguma coisa ficou. Nem que seja pelo chão, mas ficou. E talvez o que tenha ficado signifique, paradoxalmente, a nossa melhor herança em matéria de trajetória de lutas. Penso, por exemplo, na democracia como valor estendido a todas as esferas da vida institucional e cotidiana. Nas ideias generosas de justiça social, patrimônio de todos os homens de boa vontade. E penso também na ética, como única forma de relacionamento possível com o espaço público. E não só: acredito que temos cada vez mais clareza de que estatização não implica necessariamente socialização, como mercado tampouco é sinônimo de capitalismo. Novas formas de propriedade e gestão estão à nossa frente (algumas delas, pedem, inclusive, para serem revividas): cooperativismo, associação familiar, autogestão. Algumas vem da tradição anarquista, outras de um pensamento mais ligado ao chamado socialismo utópico. Quem sabe se a nova era que vislumbramos não coloca na ordem do dia essas propostas? Possibilita uma volta ao passado, com nova roupagem? Com tecnologia altamente renovada?

Mas, e o que podemos acrescentar de novo, propriamente, sob a ótica ainda de um programa de ação de esquerda? Acredito que novos temas e novos campos de luta. Quais? Feminismo, ecologismo, papel das forças da cultura e do trabalho imaterial, respeito à diversidade étnica - eis alguns dos eixos da nossa prática daqui por diante. Não existe luta à parte - tudo é parte da luta.

b) Os instrumentos. De um lado, a busca por novas formas de organização, triplamente alicerçadas, a saber: no poder local, na consciência de que ocorreu um deslocamento dos embates das portas das fábricas para as ruas das cidades - palco privilegiado das contradições sociais - e, ainda, nas redes já configuradas na internet. A renovação dos partidos políticos tendo, a meu juízo, de incorporar para valer essa nova realidade.

De outro lado, o surgimento de novos atores sobre a cena social, notadamente dos trabalhadores por conta própria, dos cooperativados de novo tipo e dos trabalhadores do imaterial (produtores de mercadoria virtuais e de cultura), na esteira da sociedade do conhecimento. Essa, provavelmente, a grande tendência do mundo do trabalho nos próximos decênios: o conhecimento como força produtiva e o trabalhador que busca se afirmar como dono dela. Antes o trabalhador transferia uma parte da sua capacidade muscular para a máquina - e essa era a era da Revolução industrial. Hoje, transfere uma parte da sua capacidade de imaginar e criar - e essa é a fase da revolução cognitiva atual.

Finalmente, temos de voltar a elaborar uma teoria da transformação social, tomando por ponto de partida formas complexas de negociação política, enterrando a idéia de assalto ao poder - que propõe colocar abaixo o aparelho de Estado - e afastando, também, do nosso horizonte a idéia da conciliação com o grande capital. Negociar para mudar, já dizia o o saudoso revolucionário Giocondo Dias. Tanto a prática social-democrata quanto aquela do chamado socialismo real dataram historicamente, apesar de seus méritos. Ambas pertencem ao período em que a organização do trabalho se dava pela Revolução Industrial, justamente. Ora, a revolução técnico-científica em curso no mundo põe novas forças em cena. E é preciso estar atento a elas, se queremos ainda intervir de forma realmente consciente no direcionamento do processo social.

Ser de esquerda, para mim, hoje, só faz sentido assim: sonhando de pés no chão.

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