30.7.07

Com os pés

O Globo, Opinião, 30/07/2007:

Com os pés

ANDREI BASTOS

Emoção. Esta é a palavra que define o 6 de junho de 2007 para um grupo de atletas com deficiência no Rio de Janeiro. O que era para ser uma solenidade discreta e quase burocrática, de assinatura de contratos de estímulo à prática de esporte entre uma instituição de defesa de direitos das pessoas com deficiência e seus atletas, transformou-se numa cerimônia de profunda humanidade. Como em todo sentimento humano verdadeiro e apaixonado, viveu-se um dia de contradição entre a intensidade e a desordem natural das emoções fortes e o alto grau de civilização de entendimento e vivência da pluralidade humana. Foi algo muito maior do que a conquista da cidadania, que em geral é negada a esses atletas pela sociedade e ali recebia o apoio da instituição na forma de bolsa e outros benefícios.

Foi um ato de amor.

As histórias de vida, contadas com a mais cristalina pureza de alma, deram o ritmo da reunião e estabeleceram uma relação de troca de experiências e sentimentos rara.

A porta aberta para a cidadania pelo Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD) para atletas com deficiência que nunca tiveram o reconhecimento devido, por mais medalhas que conquistassem, cria a possibilidade de eles se dedicarem ao esporte escolhido e evoluírem na sua prática, assim como de obterem qualificação profissional para quando não puderem mais competir. Muito além de simples patrocínios, que se preocupam apenas em aproveitar os momentos de visibilidade proporcionados pelas competições, a ação desenvolvida pelo instituto pretende resultados também para depois da superação de recordes.

Ao conquistar cidadania plena, esse grupo de atletas com deficiência está preparado para ganhar medalhas de ouro e para ganhar a vida. Como atletas e como cidadãos economicamente ativos, eles não precisam mais passar pelo que o judoca cego Antonio Tenório passou: ganhador da medalha de ouro em Atlanta e sem reconhecimento em sua volta ao Brasil, perdeu emprego e patrocínio. Mas Tenório não desistiu de seu sonho e, com a parceria do IBDD, hoje é um dos melhores atletas paraolímpicos brasileiros.

Ao final da reunião, simbolizando a assinatura de todos os contratos, Márcio Jerônimo Pereira Silva, atleta com paralisia cerebral, foi o protagonista do momento de emoção mais forte ao assinar seu contrato do jeito que pode e sabe – com os pés. Certamente o esporte paraolímpico entrará em nova fase, obtendo o reconhecimento que lhe é devido, com o exemplo que essa aliança profunda criada entre uma ONG e seus atletas oferece, ao estabelecer um compromisso de vida num ato de amor.

ANDREI BASTOS é jornalista.

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