1.10.12

'Pelo amor de Deus, entreguem-me à Justiça'

O Globo, Opinião, 01/10/2012:

‘Pelo amor de Deus, entreguem-me à Justiça’

WAGNER GONÇALVES
E NADINE BORGES

No dia 16 de maio, a presidente Dilma Rousseff anunciou o início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Objetiva ela apurar graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946-1988. O significado de graves violações de direitos humanos foi construído ao longo dos séculos essencialmente para enfrentar a violência praticada pelo Estado. Massacres, genocídios, invasões, tortura sistemática por “crime” de opinião, assassinatos de pessoas que se opõem a determinado regime, desaparecimentos forçados, “condenações” sem julgamentos, inexistência de proteção do Estado para os familiares de mortos e desaparecidos, igualmente perseguidos, sempre foram resultados de ações de agentes estatais.

Isso foi o que ocorreu durante a ditadura militar de 1964 a 1985. Aos olhos do Estado, todos eram culpados até prova em contrário. Estabeleceu-se no Brasil um regime de exceção, onde a tortura e um sistema secreto de informação e contrainformação deram suporte ao regime. À guisa de combater “subversivos”, os fins justificavam os meios, que eram sempre cruéis.

Tudo era possível à comunidade de informações. Assim, os “terroristas” ou aqueles que não aceitavam o regime ditatorial eram torturados, violentados, assassinados, desaparecidos, perseguidos, “julgados” em delegacias e quartéis na ausência de seus advogados, que muitas vezes também eram perseguidos. O simples fato de pensar diferente era considerado crime contra o Estado, quanto mais se expressar ou participar de qualquer movimento, passeata ou manifestação! Suprimiu-se até o habeas corpus, remédio essencial a qualquer sociedade organizada, cuja inexistência, por si só – em qualquer tempo – aproxima o homem da barbárie.

Por isso, não poderia ser outro o entendimento da Comissão Nacional da Verdade, ao firmar sua posição de não apurar a verdade “dos dois lados”: os atos dos torturadores (agentes do Estado) e os dos torturados, mortos ou desaparecidos. Estes já foram condenados, mortos ou desaparecidos nos porões da ditadura.

Muitos foram julgados pelos tribunais militares, cumpriram penas e, por isto, não foram anistiados: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal (§ 2º, art. 1º da Lei nº 6.683, de 28.8.1979).”

Portanto, mesmo que a Comissão Nacional da Verdade quisesse – e isso seria um contrassenso – não poderia apurar os “crimes” daqueles que lutaram contra o regime. Isso já foi feito, quando era identificada a autoria, seja por “justiçamento” ou qualquer outro motivo. Se o espírito de corpo até hoje permite aos policiais fazer “justiça com as próprias mãos”, imaginem nessa época com o poder sem limite de decidir sobre a vida e a morte dos acusados. Detido, o sonho de qualquer preso era ser levado à Justiça formalmente. Aí ele passava a ter um nome, identidade, rosto, sua família era avisada, podia ter advogado, tinha um processo, estava inserido no sistema, sua prisão era oficializada, enfim, com todas as limitações, teria direito de defesa e respeito à sua integridade física.

Não, o Estado ditatorial e seus agentes não oficializavam formalmente esses atos e não garantiram os direitos mínimos. Trabalhavam sem identificação, sem mandato judicial, com roupas e carros descaracterizados. Todos os atos, entretanto, eram registrados dentro da comunidade de informação, aos quais ninguém tinha acesso, nem o Poder Judiciário.

Correta, pois, a decisão da Comissão Nacional da Verdade ao reconhecer que as graves violações de direitos humanos, a serem apuradas, são aquelas perpetradas por agentes do Estado. Quaisquer outros atos ou violências praticadas foram apurados à exaustão e os acusados foram torturados, demitidos, exilados, mortos, desaparecidos e sentiram no próprio corpo essa “apuração”.

Um exemplo emblemático de grave violação de direitos humanos é o de Eduardo Collen Leite, o Bacuri, preso pelo torturador Sergio Paranhos Fleury. Antes de ser assassinado, gritava: “Pelo amor de Deus, vocês não podem fazer isso comigo. Entreguem-me à Justiça.”

Só pôde contar com a justiça divina.

Wagner Gonçalves foi subprocurador-geral da República
Nadine Borges é advogada e professora de Direitos Humanos

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