A impotência dos pais órfãos
Revista Época, edição 868, 26/01/2015:
RUTH DE AQUINO
A
impotência dos pais órfãos
A violência urbana absurda no Brasil, sem paralelo no mundo, deixa
órfãos milhares de pais e mães todos os anos. Crianças e jovens são mortos por
balas perdidas, por balas de assaltantes, por balas de PMs. Em qualquer lugar.
Escola, clube, restaurante, calçada, ponto de ônibus, praia e até dentro de
casa. Pais e mães de todas as classes sociais perdem seus filhos para o descaso
e o desleixo de um Estado que se omite ou contribui para a barbárie armada. O
Estado brasileiro é criminoso, é cúmplice, é culpado por falhar em todas as
suas atribuições.
Alex Schomaker Bastos tinha 24 anos. No dia 8 de janeiro, acordou às 7
horas, tomou café preto com iogurte e banana. Não usava relógio. Vestiu, como
sempre, bermuda e camiseta. A mochila não era de grife. Só gastava dinheiro com
computador. Seu celular era comum, não era iPhone, ele dizia que não precisava.
Para estudar biologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia
Vermelha, no bairro de Botafogo, pegava o ônibus 434, linha que passa na
esquina de casa, no bairro do Flamengo.
Gostava de mitologia nórdica. Na perna, uma tatuagem do martelo de
Thor, algumas runas. Na mão direita, outra tatuagem, com o símbolo dos deuses
da força. Alex se decidiu cedo pelo estudo de biologia, com especialidade em
genética. Lia Darwin desde os 12 anos. Queria fazer doutorado na Finlândia.
Sonhava em conhecer Galápagos. Um passatempo era o jogo eletrônico de cartas Magic. Outro era jogar futebol
americano. Andava de bicicleta no Aterro. Na Praia Vermelha, na Urca, tomava água
de coco.
Alex foi atingido por sete tiros, um deles no coração, no ponto de
ônibus, às 21h30 do dia 8 de janeiro, depois de passar uma mensagem pelo
celular para a mãe, às 21h16. Os dois assaltantes, em duas motos, se irritaram
quando Alex segurou assustado a mochila, com documentos, R$ 12 e um cartão de
transporte, RioCard. Mandaram bala e fugiram, só levaram o celular. No momento
em que Alex caía ao chão, sua mãe, a professora Mausy Schomaker, tirava da
geladeira seu jantar, no ato rotineiro de toda mãe. Alex não jantaria naquele
dia e em nenhum outro mais, não iria a Galápagos, não daria aulas de biologia,
não faria mestrado e doutorado, não casaria com a namorada, Bia, também
bióloga, não teria filhos.
Antes de entrar em choque, Alex deu o endereço de sua casa a quem o
socorreu. A mãe recebeu a PM pouco depois das 22 horas e soube que o filho
estava baleado no Hospital Miguel Couto. Foi para lá, “desarvorada”, e os
outros filhos não a deixaram ver o corpo de Alex. Só viu o rosto depois, no
caixão. Alex foi cremado, e os pais jogaram as cinzas na Enseada de Botafogo.
As roupas, os objetos, os livros foram distribuídos entre amigos. Os pais dizem
viver uma “irrealidade”. Quando Mausy e Andrei se apaixonaram, cada um já tinha
dois filhos do primeiro casamento. Alex era o caçula, o único que vivia ainda
com os pais.
“Hoje tomei uma cerveja com os outros filhos, fizemos um almoço em casa
e lembramos dele. Chorei muito. É como se traísse Alex ao sorrir, ao beber uma
cerveja”, disse Mausy. “Mas é o que ele quer de nós. Alex é nosso filho, nossa
dor, nossa tristeza eterna, o buraco da alma. Nós somos Alex. Não perdoamos.
Nem o assassino, nem o Estado, nem o país. Não tenho um pingo de perdão, um
pingo de fé. Não sou Deus, Maomé ou Buda. Não quero ouvir consolo de pessoas
religiosas. Sou de esquerda, sempre serei de esquerda. Mas tem algo muito
errado neste país, que se esqueceu da educação. Eu tinha 19 anos na ditadura e
me sentia mais livre para andar na rua do que qualquer garoto de 16 ou 17 anos
hoje. Um dia aquele ponto de ônibus será iluminado, haverá ali uma cabine, com
policial dentro. Não tenho sentimento de vingança, não quero matar ninguém. Mas
espero que cada um no Estado cumpra seu papel. A gente precisa trocar as armas
por livros. O Hino Nacional não pode ser cantado só no Maracanã.”
Repetindo: o Estado brasileiro é criminoso, é cúmplice, é culpado por
falhar em todas as suas atribuições. A falta de instrução universal e de
qualidade – o governo Dilma acaba de cortar R$ 7 bilhões na verba de Educação!
A falta de uma política federal e integrada de segurança, que dê apoio
logístico e estratégico aos governadores. A falta de prisões dignas e
adequadas. A falta de investigação séria – só 8% dos homicídios são
esclarecidos! A falta de punição – as leis beneficiam bandidos. A falta de
rigor com os policiais assassinos. A falta de controle nas fronteiras, por onde
entram fuzis e metralhadoras. Se o Brasil se indigna com o terrorismo ou a pena
de morte no exterior, que se revolte com a execução de 56 mil brasileiros todo
ano, a sangue-frio! Não há milhões de nós em protesto nas ruas. Somos
carneirinhos a caminho do abate?
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