13.6.07

Eles não sabem o que fazem

O Globo, Opinião, 02/06/2006:

Eles não sabem o que fazem

ANDREI BASTOS

Se a boa-fé levou as pessoas, inclusive os políticos envolvidos, a formular um Estatuto da Pessoa com Deficiência, devem ser perdoadas porque não sabem o que fazem. Não é possível que conheçam a história de quem se viu rejeitado e ignorado e, sem mágoa ou rancor, construiu ou reconstruiu a si mesmo a partir de uma condição desfavorável, muitas vezes absolutamente. Foi esta a principal conquista das pessoas com deficiência.

É preciso perdoar as pessoas de boa-fé porque a rejeição e ignorância manifestadas por elas não são frutos de convicções filosóficas ou políticas, e sim expressões culturais milenares, herdadas por elas e por nós. Um pecado original.

Sou um neodeficiente físico (2003) e, infelizmente, só tomei conhecimento da proposta do estatuto, como de muitas outras coisas, por agora. Não importa que ele esteja em discussão há muitos anos e que ninguém tenha questionado sua conveniência. Eu o faço hoje.

Evidentemente, já que este problema chamado estatuto foi colocado, quem estiver verdadeiramente interessado na defesa dos direitos das pessoas com deficiência precisará trabalhar dobrado, em duas frentes, para não ver tais direitos prejudicados. Será um trabalho aparentemente contraditório, pois ao mesmo tempo em que deverão ser propostas correções no estatuto, para se evitar o desastre, o combate à sua consecução deverá ser implacável.

O combate deverá ser implacável porque o status de tuteladas que o simples nome "estatuto" confere às pessoas com deficiência é uma indignidade, e não podemos admitir que as conquistas obtidas, especialmente a superação da baixa auto-estima, sejam ignoradas e sejamos tutelados e classificados como cidadãs e cidadãos de segunda classe. Digo isso sem desmerecer as crianças, adolescentes e idosos, que são pessoas indefesas, pela idade ou condição física, precisando ser protegidas por estatutos.

Nós, pessoas com deficiência, temos que nos proteger é dos que procuram se aproveitar de uma fragilidade conceitual ainda existente no segmento e nos empurram conceitos equivocados de caridade e piedade.

Se o senador Arns e os outros políticos que tomaram alguma iniciativa no sentido de resguardar nossos direitos com um estatuto agiram de boa-fé, é preciso avisá-los de que a legislação existente já cumpre este papel, colocando-nos em igualdade de condições com os demais cidadãos, e que os sentimentos de dó e compaixão que compõem sua boa-fé são, na verdade, manifestações de um pecado original. É preciso dizer para eles se levantarem e virem para o nosso meio, e não o contrário, porque não podemos excluir nossos companheiros cadeirantes, impossibilitados de se levantar, e nossa causa é ecumênica.

Mas se por trás dessas ações o que existe é oportunismo político ou a busca de atendimento a necessidades específicas, como a dos excepcionais atendidos pelas APAEs, por melhor que seja este fim, devemos rechaçar os oportunistas e a tutela do Estatuto da Pessoa com Deficiência que querem nos impingir e, então, justificadamente, propor um Estatuto do Excepcional, este sim um cidadão indefeso e desprotegido.

Além disso, o respeito às leis não virá com a simples substituição das que temos, qualquer que seja o novo instrumento legal, e só ocorrerá se existirem punições rigorosas e vontade política para aplicá-las. É isso que falta. Ao começar tudo de novo, e com as falhas constatadas, este estatuto do coitadinho certamente será tão descumprido, ou mais, do que as leis em vigor.

Finalmente, se, como alguns acreditam, um estatuto reúne “todas as necessidades e direitos de um segmento, para que possa ser respeitado em sua dignidade, tenha garantida a chance de protagonismo na sociedade e respaldo no exercício de sua cidadania”, vai ser preciso revogar a Constituição e fazer estatutos para negros, mulheres, gays etc.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência é a Constituição. Este estatuto agora proposto, motivado pela maldade do oportunismo político ou sentimentos de dó e compaixão da boa-fé equivocada, tem um pecado original.

ANDREI BASTOS é jornalista.

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