24.5.07

Entrevista para o site Em Dia Com a Cidadania

Em Dia Com a Cidadania, 24/05/2007:

ENTREVISTA COM ANDREI BASTOS, QUE É CONTRA O ESTATUTO DO PORTADOR (http://www.emdiacomacidadania.com.br/)

ENTREVISTA COM ANDREI BASTOS, responsável pela Comunicação Social do IBDD - Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência

1) Você é um ferrenho opositor do Estatuto do Portador de Deficiência, aprovado por unanimidade no Senado, e indo pra pauta a qualquer momento, na Câmara dos Deputados. Diga-nos, por favor onde é que “pega”, onde ele erra e é um retrocesso.

AB - Ele já começa errado e representa retrocesso apenas por ser uma proposta de estatuto. Ao se apresentar dessa forma, como um documento legal excepcional, ele é excludente, contrariando frontalmente todo o encaminhamento dado à questão há décadas, que sempre cuidou da inclusão das pessoas com deficiência no arcabouço legal de todos os brasileiros, na Constituição. É preciso entender que “estatuto” não é a palavra mágica capaz de obter o cumprimento da lei. Além disso, essa mania que alguns políticos têm de criar estatutos para tudo faz com que, erradamente, sejam praticadas as leis menores em detrimento da lei maior, ou seja, fazendo com que acabemos rasgando a Constitutição.

Essa moda de estatutos se deve ao sucesso, ao menos aparente, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. Ora, nos dois casos estamos falando de pessoas vulneráveis em termos de proteção legal, em sua maioria incapazes de lutar pelos seus direitos, o que não ocorre com as pessoas com deficiência. Além disso, no caso das crianças e adolescentes um estatuto se justificava em vista do famigerado Código do Menor que os contemplava anteriormente e, no caso dos idosos, pela inexistência de qualquer amparo legal, o que também não ocorre com as pessoas com deficiência, que contam com uma legislação que é considerada uma das melhores do mundo.

E aí mora o maior perigo: ao se aprovar este estatuto, todas as conquistas obtidas serão revogadas, não adiantando que ele diga o contrário, pois além de ser uma contradição, já que um estatuto deve ser auto-aplicável, prescindindo de outras leis, sabemos que a prática jurídica adota sempre a lei mais recente, com a justificativa lógica de ela só pode ser uma edição melhorada das anteriores.

Só que o prejuízo não fica nisso. Além das inúmeras inconstitucionalidades e falhas, na verdade, essa proposta específica, revestida de aspectos conceituais e programáticos bonitinhos e modernos, o que eu chamo de “perfumaria”, esconde uma verdadeira armadilha: quando seu texto trata do que verdadeiramente interessa à maioria das pessoas com deficiência e incomoda o poder econômico, que é o direito humano e constitucional de ir e vir, ou seja, do transporte coletivo, ele coloca a necessidade de novos regulamentos e prazos para implementação da acessibilidade. Isto significa a condenação à exclusão perpétua das pessoas com deficiência e é impossível não pensar que os autores desse estatuto criminoso não estejam a serviço dos poderosos lobbies dos transportes coletivos.

2) E quais são as saídas, as alternativas?

AB - Em primeiro lugar, é imprescindível derrubar essa proposta de estatuto e tudo o que está apensado a ela, pois representam um grande volume de lixo legislativo, o que inviabiliza qualquer discussão ou possibilidade de melhora. É esse papo de estatuto que devemos zerar e não a contagem dos prazos para implementação da acessibilidade nos transportes. Depois, já temos propostas de aprimoramento da legislação em tramitação no Senado para tocarmos adiante e, sem dúvida alguma, podemos melhorar ainda mais o que existe e é considerado bom, sempre incluídos no universo legal de todos os cidadãos, na Constituição, que é o estatuto de todos os brasileiros.

3) E por que, tendo tanto tempo desde que foi pensado a primeira vez, tantos erros?

AB - Isto se explica porque este é o jogo perverso entre os detentores do poder e a cidadania. Cada vez mais os cidadãos são ignorados e o que acaba prevalecendo é a vontade do poder econômico, seja por meio de lobbies legais, mas imorais, seja pela corrupção pura e simples, como estamos cansados de ver.

No caso, essa proposta de estatuto não partiu do segmento, que historicamente havia definido que o tratamento legal das suas questões deveria ser o primeiro exemplo de inclusão, é sempre bom repetir. Ela foi uma iniciativa de parlamentares à caça de votos, que sempre ignoraram as inúmeras críticas feitas pela militância do movimento das pessoas com deficiências e seguiram batidos, absurdamente aprovando este engodo no Senado. Diante da aparente força política desses parlamentares, muitas pessoas com deficiência ficaram intimidadas, achando que o “estupro” era inevitável, e resolveram lutar para minimizar os prejuízos, mas também foram ignoradas. A maior demonstração disso é a grande quantidade de penduricalhos apensados à proposta que tramita na Câmara atualmente.

4) Os portadores das diversas deficências não foram chamados para a conversa?

AB - As pessoas com deficiência não foram verdadeiramente chamadas para conversar, tendo sido montadas algumas farsas, sem o aproveitamento do que elas apresentaram. Em 2006, ano que foi declarado como o da pessoa com deficiência pela CNBB, eles até instituiram uma Consulta Pública de vinte dias (!), sem divulgação, na tentativa de obter alguma legitimidade.

5) Em caso negativo, como isso foi possível e como os portadores reagiram?

AB - Como eu disse antes, na ausência de lideranças expressivas e organizações ou instituições representativas de todo o segmento, as reações se deram de maneira dispersa e sem força política, o que agora estamos superando.

6) Em caso positivo, como foi essa participaçào,se existiu em todas as etapas do projeto ser discutido e votado, ou não?

AB - Como o que vivemos foi um processo de farsas, toda a discussão só conseguiu obter a inclusão de aspectos cosméticos, no plano conceitual, o que, se levarmos em conta nossa realidade de país “em desenvolvimento” acabou contribuindo para mascarar a armadilha que a proposta de estatuto representa e para distanciar a discussão da realidade brasileira.

7) Nunca houve cobrança por parte dos portadores pelo viés do tributo pago, pelo fato de pagarem todos os impostos e taxas igual a todos e não serem iguais no retorno desse pagamento por parte do Estado? Em caso positivo, quando e onde.

AB - Infelizmente não, mas este é um conceito que já conhecemos e aprovamos, marcadamente quando ressaltamos que somos economicamente ativos, não precisamos de proteção legal excepcional, que não somos “coitadinhos”.

8) Por que você chama o Estatuto de “Estatuto do Coitadinho”?

AB - Porque a questão da pessoa com deficiência é uma questão de direito e não de assistência ou caridade. Como eu ensaiei na resposta anterior e disse no artigo que vocês publicaram, “a grande conquista das pessoas com deficiência foi sua própria superação, com a consciência do direito à igualdade de oportunidades e ao pleno exercício da cidadania, tomando elas mesmas a iniciativa do seu processo de inclusão social, isso tendo sido sempre motivo de grande orgulho”. Ou seja: como não precisamos que ninguém pense ou faça por nós, não somos “coitadinhos” necesitados deste instrumento paternalista. Não pedimos favor ou caridade. Exigimos nossos direitos!

9) Quais são os países mais civilizados no tocante à integraçào do portador?

AB - Os EUA, por força de uma grande tragédia, onde as mudanças começaram a acontecer quando os soldados que lutavam na guerra do Vietnã, heróis nacionais, regressaram para casa mutilados e com grande prestígio político. Prestígio político que era ainda maior em vista da impopularidade da guerra, questionada por toda a sociedade americana de então. Com o ânimo reforçado pela contestação da sociedade, os soldados voltavam pra casa exigindo seus direitos por uma cidadania plena e tiveram suas reivindicações atendidas pelo governo que, tanto quanto o resto da sociedade com grande sentimento de culpa, não tinha outra saída. Dessa maneira as pessoas com deficiência dos EUA conseguiram fazer com que a acessibilidade material e imaterial se integrasse à sua cultura, oferecendo para o mundo um belo exemplo de sociedade para todos.

Depois dos Estados Unidos, podemos citar Canadá, Austrália, Reino Unido, Japão, Nova Zelândia, Itália e Espanha como países que se destacam no atendimento às necessidades especiais das pessoas com deficiência. A Espanha oferece uma história interessante de processo de inclusão social: de início, para favorecer as pessoas cegas, o governo entregou a administração das loterias para elas. Com o tempo os cegos espanhóis ficaram tão ricos que abriram as loterias para a participação de pessoas com outras deficiências, que também ficaram ricas. Ou seja: nada como ser pessoa com deficiência espanhola hoje em dia.

10) Como funciona lá essa integraçào. (Dê exemplos, se puder)

AB - Um amigo, que tem um filho estudando nos EUA, me contou uma história que considero exemplar. Por causa de uma única estudante cega, estrangeira ainda por cima, o campus foi todo reformado para que não oferecesse problemas de acessibilidade, já de uma maneira que atendesse também a todas as outras deficiências. Isso quer dizer que lá, como em muitos lugares do mundo, o Japão por exemplo, já se pensa incorporando os conceitos do Desenho Universal, cujos parâmetros atendem a todas as pessoas, com deficiência ou não. Afinal, se contamos com espaços e objetos acessíveis plenamente, mesmo quem não tenha nenhuma necessidade especial se beneficia, pois o risco de acontecer um acidente é quase nulo.

11) Não há como brecar esse andamento do Estatuto na Câmara até ele ser mais discutidos com vocês? Semana passada o deputado Miro Teixeira requereu que ele entrasse em votação, “por já estar pronto para isso”? Depois de aprovado vai ficar muito mais difícil.

AB - Pois é. Nós já procuramos o deputado Miro Teixeira e até o convidamos para o Encontro que realizaremos sexta-feira na OAB/RJ. Espero que ele nos atenda e compareça ao evento para que possamos discutir uma forma de acabar definitivamente com essa conversa de estatuto na Câmara e na sociedade de um modo geral.

12) Tinha que ter um jeito de encher de portadores as galerias e/ou a frente do Congresso Nacional…

AB - Acho meio difícil promover uma Marcha à Brasília de pessoas com deficiência, pelos motivos óbvios. Mas, sem dúvida alguma, vamos botar a boca no trombone como e onde for possível.

13) Pra fechar, nos dê um raio-X da situaçào dos portadores no país , como vocês estão se organizando para enfrentar a situação e a legislação e quias serão os próximos passos em relação ao Estatuto.

AB - Embora já tenhamos obtido muitas conquistas, ainda falta muita coisa para que seja possível dizer que as pessoas com deficiência brasileiras exercem plenamente sua cidadania. A primeira grande barreira é o transporte coletivo sem acessibilidade, que impossibilita todos os outros avanços. Sem ter como ir e vir, não adianta falarmos de inclusão na educação, na saúde, no trabalho ou no lazer. É preciso acabar com o medievalismo dominante na administração das concessões de transporte público. Só então poderemos detalhar os passos seguintes, que em muitos casos já estão até resolvidos. Graças a um trabalhoso processo de conscientização que realizamos, muitos setores da sociedade já entenderam nossa questão e têm uma visão correta a respeito.

Em relação ao Estatuto, espero que nosso evento contribua para sua derrubada e esquecimento, varrendo-o para o lixo da História.

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