13.6.07

O Haiti é aqui?

A propósito da discussão que está acontecendo por agora, sobre o possível papel de polícia das Forças Armadas, republico abaixo um texto que escrevi em 09/03/2006, quando o Exército ocupou a cidade atrás de armas que lhe foram roubadas (acredito que ele contém algumas reflexões e preocupações ainda válidas).

O Haiti é aqui?

ANDREI BASTOS

Os episódios recentes dos suicídios de dois generais, da guerra da Rocinha e do roubo das armas de um quartel, com a conseqüente ocupação do Rio de Janeiro pelo Exército, não estão relacionados como numa conspiração de dentro pra fora ou como resultantes de uma ação de desestabilização. São fatos isolados, mas são conseqüências, aí sim, de uma conspiração de fora pra dentro, e a relação que existe entre eles é de refletirem a degeneração das instituições brasileiras. Muito longe de ser um militarista, eu concordo com o texto "O Estado e a ordem", publicado no Jornal do Brasil de 06/03/2006, quando lembra que “o governo Fernando Henrique pretendia transformá-las (as Forças Armadas) em meras forças policiais, destinadas a atender aos interesses geopolíticos americanos, sob o pretexto do combate às drogas em nosso continente. Clinton - e o próprio ex-presidente Fernando Henrique confessou isso recentemente - queria envolvê-las no conflito interno colombiano” e, mais adiante, quando diz que “talvez com o objetivo de enfraquecê-las ainda mais, o governo passado mandou reduzir o recrutamento, diminuindo consideravelmente os seus efetivos e a preparação de reservistas”.

Qualquer país que assim mereça ser chamado precisa de Forças Armadas capazes de atuar com eficiência em questões da verdadeira segurança nacional, não permitindo, no nosso caso, que viremos quintal dos EUA, que o tráfico domine a Amazônia etc. etc., da mesma forma que também precisa de polícias com igual eficiência para combater o crime organizado.

Segurança nacional e segurança pública hoje estão inter-relacionadas porque igualmente deterioradas, como resultado de um esforço deliberado para tal, o que também informa o texto citado acima: “Os neoliberais resolveram acabar com o Estado, e, sem Estado, ninguém consegue impor, em nome da sociedade, a autoridade da lei”. Não será porque não podemos enfrentar em pé de igualdade as armas poderosas dos nossos irmãos do Norte, ou seja lá de onde forem, que renunciaremos à soberania. Mesmo porque soberania não é uma questão apenas de poderio militar e Educação, Saúde, Ciência e Tecnologia estão igualmente deterioradas no Brasil. Ainda recorrendo ao texto do JB, “se, a prazo maior, temos que reconstruir o Estado e retomar o desenvolvimento econômico e social, a situação nos exige medidas de emergência para a recuperação das nossas Forças Armadas”.

No campo da segurança pública basta lembrar o recente episódio da guerra da Rocinha para constatarmos inclusive a comprometedora ausência das forças policiais, que abandonaram a comunidade à própria sorte.

Não existe qualquer golpe em marcha. Estamos vivendo é um momento de esculhambação total, com a falência das instituições, e precisamos agir para que o Brasil não se transforme num Haiti gigante, tendo o Rio como sua capital da baderna. O Exército está correndo atrás da dignidade perdida nas favelas cariocas e age desajeitadamente, fora de sintonia com a realidade e a tecnologia, sem jogo de cintura, sem malícia. Está no meio da maior malandragem do planeta, aí incluídos os políticos que venderam a alma a quem melhor lhes pagou, e age desajeitadamente quando adota procedimentos de guerra convencional, com cerco, revista de populares e posicionamento de blindados com canhões apontados para as casas das pessoas. Esta ação de busca das armas e prisão dos soldados suspeitos deveria ser tarefa para comandos especializados, agindo sem estardalhaço, sem aparecer nas primeiras páginas dos jornais sendo ridicularizados pelos traficantes como vimos.

O Exército está fora de sintonia com a realidade porque não percebeu que esta guerra, que pensa estar travando hoje nas favelas cariocas, já está dentro da caserna há muito tempo e a maior demonstração disso é a evidência de que o assalto contou com a participação de ex-militares da própria guarnição. Está fora de sintonia na tecnologia porque não dispõe (ou não usa) armas adequadas para o tipo de ação necessária no caso, coisa em que os traficantes estão em vantagem. Não tem jogo de cintura porque, com todos estes equívocos e ainda mobilizando mais homens do que o efetivo que está no Haiti, se expõe a um vexame maior do que já foi o fato de ter sido roubado em uma unidade militar. Não tem malícia porque acredita que a população favelada vai acatar a solicitação de denúncias, o que revela inocência em relação ao código de terror que rege a vida dessas comunidades e ao papel que o tráfico também tem nelas como empregador, viabilizador de ascensão social e patrocinador de benefícios sociais. Por isso, é provável que seja passado pra trás pela malandragem, que não faz os negócios mais lucrativos nos morros e sim no asfalto, nas classes A e B da Zona Sul, onde encontramos muitos dos políticos que venderam a alma para quem melhor lhes pagou, não sendo apenas os que estão envolvidos com o tráfico, pois eles existem, mas todos os que contribuíram com ação ou omissão para o estado de degenerescência em que se encontra nossa sociedade.

Está difícil enxergar alguma coisa boa nesta ação, que passa mais a idéia de amor-próprio ferido do que de defesa das instituições sociais, todas elas, e não só a das Forças Armadas. Talvez o único aspecto positivo seja a tênue sinalização de que a sociedade ainda tem a quem recorrer, além da(s) Igreja(s), mas isto precisa ser ratificado com o sucesso da operação. Já que o Exército botou o bloco na rua, só pode sair dela como herói, de preferência não bolivariano, resgatando a auto-estima dele e a nossa.

Os índices de violência só caíram, temporariamente, por causa da presença das tropas nas ruas. Assim que os soldados saírem da paisagem, fica tudo como dantes no quartel de Abrantes, não tendo ocorrido efetiva redução da violência. Não é porque o Exército é "menos" corrompido que a criminalidade recuou, e nem é porque sua presença provoca medo. A bandidagem, aí incluídos policiais corruptos etc., tem medo é de que esta ação se desdobre num processo em que a sociedade se mobilize contra ela, o que seria um belo resultado, pois é disso que estamos precisando, mais do que de tanques. Regidos pelas nossas consciências, não podemos mais tolerar a grande irresponsabilidade que existe em toda a escala social. É pouco o que podemos fazer, mas precisamos começar.

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