11.1.16

Alex, nós também somos assassinos?

O Globo, Opinião, 09/01/2016:
Alex, nós também somos assassinos?
MAUSY SCHOMAKER E ANDREI BASTOS
“Sorte a dos que, deixando de ser humanos, se tornam feras. Infelizes os que matam a mando de outros e mais infelizes ainda os que matam sem ser a mando de ninguém. Desgraçados, enfim, os que, depois de matar, se olham ao espelho e ainda acreditam serem pessoas” (Mia Couto)
Alex, ontem fez um ano que você foi tirado de nós de uma maneira covarde e cruel. Nós, seus pais, gostamos de lembrar que fizemos o melhor possível para que você compartilhasse nossas convicções e crenças de que devemos lutar por um país melhor, para que você se transformasse numa pessoa solidária, que atentasse para as questões da injustiça social e econômica e que entendesse o seu papel para melhorar o mundo. Nós acreditávamos nisso e ainda queremos acreditar, por mais complexo e antigo que pareça.
Mas hoje não existe mais complexidade alguma, assim como não existem mais explicações ou dúvidas. De fato, a natureza primitiva, de instintos básicos, avançou no terreno da existência sem encontrar nenhuma reação civilizatória efetiva, e muitas vezes encontrando grandes estímulos à barbárie.
A realidade não leva mais em consideração diferenças entre ricos e pobres, entre cultos e incultos, entre os que só andam de carro blindado e os que, como você, andam no ônibus 434. Não existem mais explicações para as diferenças, pois todos vivem de acordo com as diretrizes dominantes de desconsideração ao outro e afirmação de vontades individuais a qualquer preço, tornando o valor da própria vida uma abstração.
Alex, a barbárie nos domina. Não apenas pela violência explícita que tirou você de nós e terminou com seus sonhos tão cedo, mas também pelo descaso com a educação (você ia ficar muito feliz com a atitude dos estudantes paulistas que mostraram com firmeza que o velho jargão “O povo unido jamais será vencido!” está muito atual), com a saúde, e pela corrupção, hoje tão descarada que não temos palavras para descrevê-la.
Alex, nós, seus pais, estamos brigando com nossos instintos primitivos. Como reagir à dor inominável e à saudade diária, que sentiremos para sempre, pelo seu assassinato para roubarem seu celular, vendido por R$ 300, sem reconhecer que somos capazes de querer vingar você? Não sabemos.
Por enquanto, procuramos honrar a sua memória agindo da maneira como te ensinamos: acreditando na cidadania, na educação e no amor. O lugar onde você morreu e onde vimos seu sangue na calçada, conseguimos, com a ajuda de muitos, transformar numa praça que leva seu nome, hoje iluminada e bem cuidada, e onde seus colegas da UFRJ podem esperar o ônibus 434 com mais segurança. Lá também colocamos uma estante de livros, onde as pessoas pegam, deixam e trocam livros e, acredite, até agora ela está muito bem cuidada, e não mais por nós. Quem cuida da sua estante de livros são as pessoas que, assim como nós, acreditam que a educação liberta e que a cidadania é um direito de todos.
Faz um ano que você foi assassinado e, embora tenhamos consciência de nossos instintos primitivos, queremos confiar em que a Justiça dos homens seja a mais rigorosa possível e em que a justiça do universo seja implacável. Se tais desejos nos tornam assassinos, então somos assassinos.
Mausy Schomaker e Andrei Bastos são pais do biólogo assassinado em frente ao campus da UFRJ, em Botafogo, em 8 de janeiro de 2015

‘O coração vai sangrar para sempre’, diz pai de jovem assassinado

Pais de Alex Schomaker, morto em ponto de ônibus, lutam na Justiça contra o estado
POR LUDMILLA DE LIMA
Mausy Shomaker e Andrei Bastos, pais de Alex – Fernando Lemos
RIO — Sentados numa pracinha em Botafogo, em frente ao campus Praia Vermelha da UFRJ, Mausy Schomaker e Andrei Bastos chamam o filho Alex de “nerd feliz”. Há um ano, ele se preparava para iniciar o mestrado em biologia e fazia planos para um doutorado na Finlândia, no campo de genética e doenças raras. Também havia acabado de se inscrever na prova para professor do Colégio Pedro II. Ao mesmo tempo em que era um jovem calado, que gastava horas em frente ao computador, e extremamente dedicado aos estudos, direcionados à pesquisa e a um futuro no magistério, Alex gostava de pedalar do Flamengo ao Leblon, ir à praia (em particular, a Vermelha), tatuagens (tinha várias) e namorar.
Os pais contam as histórias do rapaz às vezes com risos. Mausy recorda o trabalho inusitado do filho durante os carnavais (que ele odiava), quando ganhava um dinheiro extra ajudando a receber turistas, já que falava inglês e alemão. No seu último carnaval, atuou na Delegacia de Atendimento ao Turista. Alex também era monitor do Colégio de Aplicação da UFRJ. A conversa segue como se ele estivesse presente em algum lugar da sua rotina. Mas, uma hora depois, a mãe desaba. Em lágrimas, ela encosta a cabeça no ombro do marido e revela toda a sua dor:
— Parece que ele vai sair da UFRJ a qualquer momento, parece que ele está vindo para cá.
Na última sexta-feira, fez um ano que o estudante de biologia da UFRJ foi assassinado naquela pracinha da Rua General Severiano, hoje chamada Alex Schomaker Bastos. Aos 23 anos, ele levou sete tiros durante um assalto praticado por dois bandidos numa moto, que o atacaram num ponto de ônibus localizado ali. Após sair da universidade, Alex tinha ido jantar no Outback com a namorada e amigos. Menos de 15 minutos antes de ser baleado, mandou uma mensagem por celular para a mãe: “Estou indo para casa”. Quem bateu à porta de Mausy logo depois, no entanto, foi a polícia, avisando o que tinha acontecido.
Os suspeitos do crime, William Augusto Nogueira e Anderson Leandro Bernardes, se encontram presos e ainda estão sendo julgados, à espera apenas do veredito final.
Mausy diz que nesse ano que passou sem Alex a dor da perda “se solidificou”. Ela, Andrei e outras pessoas da família carregam no corpo uma tatuagem que o estudante tinha no pulso: um símbolo de força, segundo a mitologia nórdica. No braço, Mausy ainda copiou a árvore da vida de Darwin, que o filho tinha desenhada no corpo.
— As pessoas dizem que o tempo cura. O tempo para mim só aumenta o buraco. Cada um reage de uma maneira. A nossa é fazer algo para melhorar o lugar em que a gente vive. Mas a dor não se desmancha, não — desabafa a mãe, de 64 anos, professora voluntária de português.
PONTO GANHOU ESTANTE DE LIVROS
Uma das atitudes dos pais de Alex foi transformar o local do crime. Eles pintaram o ponto de ônibus de branco e instalaram sob a cobertura uma estante com livros. Já a praça foi reformada pela prefeitura, ganhando equipamentos de ginástica e brinquedos. Embora Mausy e Andrei não cuidem mais do lugar como no início, o espaço voltado à leitura continua arrumadinho, graças à população. As prateleiras ontem estavam cheias de livros científicos.
O lugar não costuma ser visitado por Mausy e Andrei, que agora somente param no ponto de ônibus quando querem se lembrar do filho. Ver o nome de Alex na placa da praça, revela Mausy, não traz qualquer felicidade. Ontem, no entanto, os pais deixaram lá uma pilha de títulos, como “Enterrem meu coração na curva do Rio”, de Dee Brown, sobre a história dramática dos índios americanos. Por acaso, um dia antes, Mausy se deparara com uma frase de Mário Quintana que ela agora quer emoldurar e pendurar na estante: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.
O projeto dos pais é replicar a iniciativa, com luz e livros, em outros pontos de ônibus da cidade. Gostariam que o prefeito Eduardo Paes abraçasse a ideia.
— Nós vamos continuar lutando por cidadania e justiça. É evidente que a morte dele provocou em nós muita raiva, vontade de vingança. Mas, se nós fizermos isso, vamos desonrar o nosso filho, macular a boa energia que ele sempre foi em vida — diz, com emoção, o jornalista Andrei, de 64 anos.
A família move na Justiça uma ação contra o estado, apontado como também responsável pelo crime.
— O estado é cúmplice. Não puxou o gatilho, mas, quando abandona um lugar como este, contribui para a violência. Não estamos falando de policiamento. Sou contra uma cidade totalmente policiada — afirma Andrei, citando não só a situação do lugar antes, sem iluminação, como os crimes que a dupla de bandidos já vinha praticando em Botafogo, sempre nos mesmos dias e horários, motivos de alerta na vizinhança e na comunidade da UFRJ.
Com o dinheiro que poderá vir se a ação for ganha, os dois pretendem fazer algo positivo no campo da educação, ajudando estudantes com poucos recursos. Em relação aos assassinos, “perdão” é uma palavra que não existe para os pais de Alex. “Não sou madre Teresa de Calcutá”, repete sempre Mausy, que tem outros dois filhos. Andrei também tem mais dois, de outro casamento.
Hoje, Mausy fará novamente um ritual que cumpriu sete dias após a morte de Alex: irá até a Praia Vermelha e, numa prancha de stand up paddle, vai chorar sozinha no meio do mar.
— O coração vai sangrar para sempre — diz, soluçando. — O que move a gente é o Alex.

Um brinde ao Alex e à vida

Depois da missa em homenagem ao Alex, oferecida pelos seus colegas e professores do Instituto Bennett, um brinde a ele e à vida, com Daniel Palatnik, Ronald Palatnik, Olivia Fürst, Patricia Furst, Gustavo Bastos, Tania Fayal, Daniele Guimarães Fayal, Lucas Fayal, Chumbinho, Sofia Palatnik, Lígia e Mausy Schomaker, no restaurante Tango.

6.1.16

Alex Schomaker Bastos