30.4.12

Saúde no Brasil

A saúde no Brasil vai mal
porque só tem um hospital:
É o Sírio-Libanês,
um hospital burguês.

27.4.12

Estimular a esperança

O Globo, Outra Opinião, 23/04/2012:

TEMA EM DISCUSSÃO: Revisão dos critérios de aplicação da progressão de pena

Estimular a esperança

MAÍRA FERNANDES

A realidade da execução penal normalmente não interessa à sociedade, a menos que sobrevenha um novo crime grave, com repercussão midiática, momento no qual ressurgem as propostas de recrudescimento da legislação punitiva e os questionamentos em torno da Lei de Execução Penal (LEP).

Atualmente, existem 514.582 detentos no Brasil e um déficit de vagas em torno de 40%, evidenciando que não há lugar para abrigar tanta gente — e não haverá nunca, enquanto a prisão for a regra, e não a exceção. Tal cenário desalentador não aconselha penas mais severas, mas a adoção de medidas alternativas, nas quais o índice de reincidência é, comprovadamente, menor. O enrijecimento de leis penais não evita a prática de crimes, apenas colapsa um sistema que não para de crescer.

Da mesma forma, a execução progressiva da pena — que autoriza ao próprio interno, por intermédio de sua conduta carcerária, direcionar o cumprimento de sua reprimenda com vistas a atenuá-la — não é uma vilã a ser vencida, mas uma das mais importantes garantias legais, pois assegura a individualização da pena e a preservação dos direitos fundamentais do preso previstos em nossa Constituição (embora, na prática, também seja uma forma de o sistema controlar seu comportamento carcerário).

Autorizados pelo Juízo da Vara de Execuções Penais, muitos presos deixam as unidades de regime aberto e semi-aberto diariamente para trabalhar, estudar, visitar a família, enfim, reconstruir suas vidas, e retornam ao sistema no fim do dia — não evadem ou praticam novos crimes, como se crê. Além disso, mais de seis mil liberados condicionais de diversas cidades do Rio de Janeiro comparecem trimestralmente aos patronatos no Rio ou em Campos, os únicos existentes para atender a todo o estado, o que dificulta o cumprimento do benefício.

São egressos do sistema que lutam contra o olhar estigmatizante para se reinserir em sociedade sem as sombras do passado. Um desafio que se torna mais penoso quando um caso de reincidência vira notícia, rotulando indivíduos, como se suas histórias de vida, crime, cárcere e recomeço fossem iguais. Uma generalização perigosa.

Não é a LEP que requer mudanças, mas a forma de se pensar e aplicar políticas penais e penitenciárias, com a prioridade que o tema merece. Afinal, de que vale uma lei de execuções penais se, no Rio de Janeiro, apenas quatro juízes — auxiliados por um reduzido número de servidores — irão aplicá-la em milhares de processos, dos quais cerca de 30 mil são somente de réus presos? A culpa da criminalidade não é da LEP ou do Código Penal. Não é da progressão de regime, da comutação da pena ou de qualquer benefício concedido aos presos. Ao contrário.

É a perspectiva de atenuar sua pena que mantém o preso conectado com a realidade, diante da expectativa de retorno ao convívio social. Não há interno que não conheça, em detalhes, a contagem de suas frações de pena para alcançar o lapso temporal necessário à obtenção de benefícios.

A sociedade, mesmo a contragosto, precisa voltar a debater um tema fundamental: o que se pretende com a aplicação da pena? Com a prisão, o Estado já suprime dos indivíduos a liberdade. Não lhes pode tirar a esperança.

MAÍRA FERNANDES é advogada criminal e presidente do Conselho Penitenciário do RJ.

23.4.12

Questão de saúde pública

O Globo, Outra Opinião, 22/04/2012:

TEMA EM DISCUSSÃO: Internação compulsória de dependentes crônicos de crack

Questão de saúde pública

MARGARIDA PRESSBURGER

A política de combate ao crack no Rio de Janeiro se revelou um completo fracasso, como já prevíamos quando de seu polêmico e midiático início, há quase um ano. As imagens recentes de um caminhão baú transportando dezenas de dependentes químicos da cracolândia da Central do Brasil até os abrigos, ou melhor, até as casas de recolhimento da prefeitura, foram a mais completa tradução da derrota frente ao crack das medidas equivocadas de recolhimento compulsório de crianças, adolescentes e adultos viciados, adotadas pelo município.

Sua continuidade comprova apenas a nossa suspeita de que esteja sendo implementada com o objetivo de higienizar a cidade às vésperas de importantes eventos esportivos e católico.

No ano passado, em meio a um debate na sede da OAB-RJ, o secretário municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, defendeu a política por ele adotada, dizendo que se encontrasse um filho seu na cracolândia o pegaria pelo braço e o internaria, mesmo a contragosto, em uma das melhores clínicas que o dinheiro dele pudesse pagar. Ao ouvir a sua confissão, eu perguntei: por que, então, as crianças e os adolescentes dependentes não estavam sendo internados nas melhores clinicas que o dinheiro público pode pagar? A interrogação era pertinente porque, na ocasião, o governo federal destinou recursos da ordem de R$ 2,4 milhões para políticas de combate ao crack no Rio de Janeiro, assim como recentemente anunciou a liberação de R$ 3,2 milhões com o mesmo fim para o município de São Paulo.

Aterrorizada pela violência e cerceada no seu direito de andar com tranquilidade na cidade em que vive, a população quer que alguma coisa seja feita. Concordo. Alguma coisa já teria que ter sido feita muito antes da véspera da Copa do Mundo, das Olimpíadas e da Jornada Mundial da Juventude Católica. Alguma coisa teria que ter sido feita há 30 anos, quando o menino de rua pedia um trocadinho para comprar cola. Da cola ao crack foi um longo caminho ignorado pelos governos.

Alguma coisa precisa ser feita agora. E não é recolher viciados e levá-los para locais que não curam ninguém. Primeiro, porque ninguém se cura de uma dependência química se não quiser. Segundo, porque não há nada nesses locais que incentive alguém a se livrar do crack. São casas em que os dependentes vão ficar três, quatro, cinco ou seis meses, se não fugirem antes, até serem devolvidos às calçadas e às cracolândias.

O crack é terrível. Não será derrotado com políticas de enxugar gelo e de colocar dedo em bolinha de mercúrio, a exemplo de recolhimento em abrigos truculentos e posterior abandono. Talvez o seja pelo abrigamento e acolhimento. Pelo cuidado com as crianças e os adolescentes que não foram cooptadas pelo tráfico, ainda uma das maiores agências de emprego do Rio de Janeiro.

O município insiste em jogar dinheiro pelo ralo, em limpar as ruas. Esquece que crack não é assunto de xerifes, mas de médicos. É questão de saúde pública. Livrar as nossas crianças desse destino terrível é assunto de Estado e deve ser planejado.

MARGARIDA PRESSBURGER é presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e representa o Brasil no Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU.

19.4.12

A "outra"

Sabedoria

ANDREI BASTOS

Há alguns anos eu estava procurando apartamento para alugar e, entre os vários imóveis que visitei por indicação de uma amiga corretora, fui a um endereço na Rua Hilário de Gouveia, em Copacabana.

Minha amiga disse que o apartamento estava mobiliado e que eu poderia ficar com toda a mobília ou parte dela, bastando avisar para que retirassem o que não me interessasse. Depois de pegar as chaves com ela, fui sozinho visitar o imóvel.

Prédio dos anos 1950, hall de entrada amplo, garagem, porteiro simpático, tudo muito bom. Eu já sabia que o apartamento também era amplo, de quatro quartos, pois era o que eu precisava, e podia pagar, naquela época.

Meti a chave na porta e tive minha primeira surpresa ao passar do hall do elevador para uma saleta que, em muitos outros apartamentos, poderia ser chamada de sala. Tudo era grande, os espaços generosos. Tão generosos que me fizeram estancar diante das três salas interligadas e avarandadas, enormes.

Na primeira sala, uma comprida mesa de jantar com doze cadeiras se impunha como sagrado lugar de encontro familiar; em outra, dois sofás e quatro poltronas aconchegantes convidavam para boas conversas ou cochilos; e na última, reinava absoluto um belo piano de cauda. Tudo complementado com mesinhas e cristaleiras, estas repletas de peças finamente trabalhadas.

Atordoado, prossegui na exploração daquele mundo que acabara de descobrir e continuei a ter surpresas, uma atrás da outra. O primeiro quarto, perto da saleta da entrada, tinha sido transformado em escritório, com sólida mesa de madeira nobre no centro e paredes cobertas de estantes tomadas por livros de Direito.

Depois, conheci a suíte de hóspedes e a do casal, mobiliadas com bom gosto, o quarto da filha, decorado com motivos infantis femininos, e um banheiro no meio do corredor. A grande surpresa desta etapa é que os armários estavam cheios com as roupas dos antigos moradores. Ternos, camisas, vestidos, meias, sapatos, estava tudo lá, em perfeito estado!

Como se não bastasse, na cozinha encontrei a geladeira ligada e cheia de comida e, acima da minha cabeça, uma gaiola com passarinho, vivo e cantarolante. Fiquei achando que minha amiga corretora tinha me dado as chaves da casa dela.

De volta ao meu escritório, liguei para minha amiga e lhe disse que tudo me parecia irreal, que ela devia ter se enganado com as chaves.

Depois de rir muito, ela falou que não tinha se enganado e que tudo era real. Contou que um casal morou ali a vida inteira, desde a construção do prédio, teve uma união tranquila e aparentemente feliz, com apenas uma filha, que se casara com um advogado tão bem-sucedido quanto o pai e morava na Lagoa. Disse ainda que o velhinho tinha morrido há coisa de uns dois meses, de velhice mesmo, e a família, mexendo na papelada, acabou descobrindo uma linha telefônica no nome dele, no Méier!

Pois é, finalizou minha amiga, puxaram o fio do telefone, quer dizer, da meada, e acabaram descobrindo que o pacato velhinho mantinha outra família, pelo mesmo tempo do seu “casamento feliz”, com direito a três filhos e quatro netos! Foi uma verdadeira tragédia familiar e a velhinha, com indignação do tamanho do mundo, saiu de casa só com a roupa do corpo, que queimou assim que teve outra, não querendo mais saber de nada que lembrasse o indigitado, particularmente do passarinho!

Minha sábia mulher preferiu outro imóvel, inteiramente vazio…

Our Day Will Come – Amy Winehouse

10.4.12

Honrar o país

Folha de São Paulo, terça-feira, 10 de abril de 2012

VLADIMIR SAFATLE

Honrar o país

Aqueles que hoje desafiam a mudez do esquecimento e dizem, em voz alta, onde moram os que entraram pelos escaninhos da ditadura brasileira para torturar, estuprar, assassinar, sequestrar e ocultar cadáveres honram o país.

Quando a ditadura extorquiu uma anistia votada em um Congresso submisso e prenhe de senadores biônicos, ela logo afirmou que se tratava do resultado de um “amplo debate nacional”. Tentava, com isto, esconder que o resultado da votação da Lei da Anistia fora só 206 votos favoráveis (todos da Arena) e 201 contrários (do MDB). Ou seja, os números demonstravam uma peculiar concepção de “debate” no qual o vencedor não negocia, mas simplesmente impõe.

Depois desse engodo, os torturadores acreditaram poder dormir em paz, sem o risco de acordar com os gritos indignados da execração pública e da vergonha. Eles criaram um “vocabulário da desmobilização”, que sempre era pronunciado quando exigências de justiça voltavam a se fazer ouvir.

“Revanchismo”, “luta contra a ameaça comunista”, “guerra contra terroristas” foram palavras repetidas por 30 anos na esperança de que a geração pós-ditadura matasse mais uma vez aqueles que morreram lutando contra o totalitarismo. Matasse com as mãos pesadas do esquecimento.

Mas eis que estes que nasceram depois do fim da ditadura agora vão às ruas para nomear os que tentaram esconder seus crimes na sombra tranquila do anonimato.

Ao recusar o pacto de silêncio e dizer onde moram e trabalham os antigos agentes da ditadura, eles deixam um recado claro. Trata-se de dizer que tais indivíduos podem até escapar do Poder Judiciário, o que não é muito difícil em um país que mostrou, na semana passada, como até quem abusa sexualmente de crianças de 12 anos não é punido. No entanto eles não escaparão do desprezo público.

Esses jovens que apontam o dedo para os agentes da ditadura, dizendo seus nomes nas ruas, honram o país por mostrar de onde vem a verdadeira justiça. Ela não vem de um Executivo tíbio, de um Judiciário cínico e de um Legislativo com cheiro de mercado persa. Ela vem dos que dizem que nada nos fará perdoar aqueles que nem sequer tiveram a dignidade de pedir perdão.

Se o futuro que nos vendem é este em que torturadores andam tranquilamente nas ruas e generais cospem impunemente na história ao chamar seus crimes de “revolução”, então tenhamos a coragem de dizer que esse futuro não é para nós.

Este país não é o nosso país, mas apenas uma monstruosidade que logo receberá o desprezo do resto do mundo. Neste momento, quem honra o verdadeiro Brasil é essa minoria que diz não ao esquecimento. Essa minoria numérica é nossa maioria moral.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

Milicos no CQC

7.4.12

Creche Santa Clara

3.4.12

Não adianta me dedetizar

ANDREI BASTOS

Eu costumo dizer que nasci comunista porque meus pais, então com vinte anos, militavam no Partidão. E digo também que fui criado numa célula partidária porque em nossa casa, pelas minhas lembranças de infância, aconteciam muitas reuniões políticas e intelectuais de esquerda, regadas a chupeta no meu caso, claro.

Na adolescência, militando contra a ditadura no movimento estudantil, fiz muitos amigos que, depois dos sequestros, torturas e assassinatos praticados pelos agentes do Estado, acreditaram na redemocratização e ingressaram em partidos políticos alinhados à esquerda, tendo alguns até embarcado na invenção do Golbery para desmontar Brizola e a esquerda em geral. Propósitos honestos à parte, decidi ficar na minha, já descrente diante do circo armado.

Criei barba e filhos sem entrar para nenhum partido, até que Georgette Vidor se elegeu deputada estadual pelo PPB (!) com minha ajuda na elaboração do material de campanha, que produzi tapando o nariz e, diga-se de passagem, minimizando ou ignorando a sigla partidária.

Já trabalhando no gabinete de Georgette na Alerj, fiquei feliz feito pinto no lixo quando ela foi cooptada para o PPS, partido nascido na mesma maternidade que eu. Animado pela possibilidade concreta de “fazer alguma coisa” que o mandato da então deputada proporcionava, ainda mais contando com um partido “socialista”, finalmente me filiei a uma agremiação política e arregacei as mangas.

Depois de me dedicar com desprendimento às tarefas que muitas vezes eu mesmo colocava para mim, num voluntarismo saudável, comecei a comprovar a tese que inicialmente me fez descrente no sistema político partidário brasileiro que nasceu da ditadura, vendido a preço de banana do Planalto Central.

Constatando a impermeabilidade da política partidária a qualquer intervenção sincera e desinteressada pelo bem comum, já que tal política é regida pelo interesse pessoal ou de grupos em benefício próprio, quase sempre pecuniário, passei a acreditar que só a implosão do sistema, em atos de denúncia da falência da democracia representativa de dentro pra fora, poderia fazer com que deixasse de existir essa gigantesca pedra no caminho da evolução social.

Acreditando nesse caminho de implosão do sistema político partidário e de transformação da democracia representativa em participativa, cheguei a propor essa opção a companheiros da direção municipal do PPS, onde ocupei a função de diretor de Comunicação. Recebi muitos sorrisos condescendentes. Como não vivo disso, de política partidária, mais facilmente posso prosseguir com minha fé e minha faca amolada, me esforçando para desmascarar a “armadilha democrática” que os ditadores nos deixaram.

Por fim, e obviamente, não posso negar que os últimos acontecimentos envolvendo o PPS, onde fiz grandes e respeitáveis amigos, me entristeceram e foram as últimas gotas d’água para mim. Confortado pela promessa de mantermos nossos princípios e visão crítica, nas palavras de Stepan Nercessian na reunião do diretório que decidiu pela adesão ao governo no Rio de Janeiro, tentei compensar minha insatisfação com a ideia de ser a mosca que pousaria nessa sopa. Agora, desfiliado, serei a mosca que pousará em todas as sopas, aliás, como sempre fiz.

1.4.12

Grandeza ou pequenez

A decisão do Supremo sobre o alcance da anistia interessa mais a ele mesmo, pois ela determinará seu destino, com grandeza ou com pequenez. O direito nasce nas ruas e, seja qual for a decisão dos juízes, a luta pela punição de torturadores e assassinos da ditadura continuará, no país e no exterior.