25.1.07

Cadê a inteligência?

ANDREI BASTOS

Para quem já está cansado de ouvir dos novos governantes que o combate ao crime organizado deve ser feito com inteligência, essa história de revistar viajantes e veículos nas estradas pode acabar levando as autoridades a terem que escrever “O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO SE FAZ COM INTELIGÊNCIA” cem vezes no quadro negro. Afinal, o que podem render tais operações além da captura de um ou outro maconheiro desligado e dois ou três muambeiros desavisados?

Nem como intimidação essas ações podem ser encaradas. Na verdade, seu caráter ostensivo e espalhafatoso serve é para prevenir os criminosos e levá-los ao aprimoramento das suas técnicas, quando for o caso, visto que geralmente estão agindo muito longe do falso palco da “guerra”.

É verdade que ainda funcionam alguns tradicionais corredores do mercado interno e de exportação de commodities como, por exemplo, maconha e cocaína, mas qualquer doidão da Zona Sul do Rio de Janeiro sabe que o “barato” hoje é manufaturado pela indústria química e farmacêutica e chega em contêineres, assim como praticamente tudo o que abastece as lojas de R$ 1,99 e as residências da classe média. É provável que os números do contrabando sejam muito maiores do que os do tráfico, o que dá quase natureza de “colarinho branco” ao crime organizado dos nossos dias.

Por falar em contêineres, inteligência e espalhafato, minha esperança é que autoridades menos preocupadas com o marketing eleitoral estejam dedicadas à procura de uma maneira de acabar com a festa das “empresas” de importação e exportação atuantes no estratosfericamente lucrativo comércio de armas, drogas químicas e produtos “made in China”. Será que tem macho pra encarar essa? Como alterar a loteria invertida do sistema de comércio exterior e acabar com a fonte de riqueza de muitos escroques nacionais?

Conta a lenda que o sinistro Armando Falcão, personagem nefasto da nossa história, começou sua fortuna no Ceará realizando uma operação curiosa: mandava vir do exterior um navio carregado de automóveis de luxo, enviava um barco pequeno com uma equipe para retirar uma porta de cada carro em águas seguras e, quando o navio com os veículos sem porta se aproximava, fazia a apreensão da carga, que ele mesmo arrematava por preços irrisórios em leilões da Receita. Passado algum tempo, era apreendida uma carga de portas de automóveis, também arrematada por ele em leilão. Muito criativo, não?

Mas nem original o Armando Falcão foi, pois lenda mais antiga conta que na Guerra do Paraguai, nos anos 1860, o general escroque Solano López fez fortuna negociando botas do seu próprio exército. O esquema era o mesmo do Falcão: primeiro chegavam pés direitos de botas, que López estranhamente comprava, e, depois de algum tempo, que incrível!, eram apreendidos os pés esquerdos das mesmas botas. Assim, ajudado pelas coincidências, ele podia vender os pares completos para seus soldados usarem.

Lembrando dessas histórias e assistindo ao circo armado pelas autoridades marqueteiras, não é difícil pensar o quão diversionistas podem ser estes cercos e revistas, desviando a ação repressora de um caminho inteligente de verdade, seja por má-fé, seja por incompetência.

24.1.07

Para mais infelicidade geral da nação

ANDREI BASTOS

"Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
.....................................
Meus inimigos estão no poder

Ideologia
Eu quero uma pra viver"

(Cazuza/Roberto Frejat)

Meu estado de espírito, de desilusão e desânimo, quase absoluto diante do avanço das ervas daninhas políticas, que encontram solo fértil em Brasília, na Câmara dos Deputados, responde à idéia de que a eleição na Câmara seja uma troca de favores indo muito além disso.

De fato, troca de favores é um mal menor, secundário, em face do enorme prejuízo que a prática política de alma pequena (e bolso grande) vem causando às instituições, à sociedade brasileira.
Já não existem ideologias, e não por culpa do fim da Guerra Fria, e os partidos não passam de agremiações vazias de conteúdo, "clubecos" ou "clubões" de espertalhões e vendilhões da pátria. Essa gente sabida vive distante das reais necessidades do Brasil e sua gente, não por falta de discernimento, mas por pura safadeza.

O discernimento para essa gentalha serve para mostrar o caminho dos cofres públicos a serem saqueados e quais as migalhas a serem distribuídas e apresentadas como indicadores de melhora do doente, eternamente em berço esplêndido, só que na UTI e com metástase pulmonar.

Talvez ajude a melhorar nossa situação de indigência de política verdadeira a desmitificação desses senhores ridículos, tão posudos em cima das suas tamancas, e que deveriam ter vergonha, não de roubar, pois para muitos isto é sincera vocação e é preciso apenas prendê-los, mas de arrotarem tanta bazófia, impregnando o ar com seu péssimo hálito ético e moral.

Que tristeza para nosso país essa presepada toda. É tudo negociata com dinheiro público, com nossa cidadania.

O rei e os parlamentares estão nus!

17.1.07

Trem-fantasma (9) - último capítulo

Estação Regimento Sampaio

ANDREI BASTOS*

Logo acontece troca no elenco do arremedo de peça de Gorki: sai Ronaldo, entra João, cuja fama de ter sido o primeiro preso político a fumar baseado na cadeia corre os cárceres e sempre o antecede. O primeiro, mas não o único, que o digam as paredes das celas do quartel do Leblon.

No dia-a-dia agora monótono, a rotina da “Ralé” se divide entre os ginastas e os preguiçosos, não necessariamente gordos, pois são justamente os magricelas que não querem nada com o basquete. Aliás, com a saída de Ronaldo, a turma da preguiça ficou em maioria e só Avelino e Zé Maria suam a camisa de verdade, várias vezes por dia. Os outros se contentam em caminhar em círculos e abrir e fechar os braços, na vertical e na horizontal, durante a hora de banho de sol diária.

A quebra da monotonia é feita várias vezes por conflitos muito distantes das acontecências da Barão de Mesquita. É coisa de recusar comida quando ela chega misturada como lavagem para porcos e mergulhada na banha fria. Nem sempre tem alguém com saco para separar os grãos de arroz e de feijão e os pedaços de carne ou frango da gordura. A resposta, imediata, é recolher as caixas de fósforos e fica-se sem fumar, supremo castigo para quem já se considera num balneário. Sem ter mesmo o que fazer, a turma resolve fazer fogo para acender um cigarrinho esfregando um cabo de vassoura no outro, em revezamento dia e noite até conseguir, suprema vitória.

Apesar do clima favorável, quando chega a escolta e convoca algum dos prisioneiros a recolher seus pertences, a apreensão é grande, todo o passado muito recente desaba em toneladas sobre suas cabeças, como na vez do ex-doidão da geladeira. Ele sai da cela escoltado, sob olhares que se esforçam para confortar, percorre os corredores largos, chega no amplo saguão da entrada principal do quartel e, ali, sem nada além da sacola com suas poucas coisas, ouve perplexo a ordem para ir embora dada pelo sargento comandante da escolta, que lhe aponta o portão que leva para a rua.

Como assim? Como ir embora sem nem um centavo? E depois, dar um passo além daqueles muros, sozinho, é tão assustador quanto o primeiro passo dado quando o cerco ao apartamento foi percebido. Que situação maluca! Que porra de liberdade é essa? Será na verdade uma armadilha? A dúvida fica maior ainda quando a escolta simplesmente vai embora e o prisioneiro fica parado na porta, olhando para todos os lados pra ver se tem algum fusca ou Veraneio dando bandeira nas redondezas. De jeito nenhum ele sai dali assim, sem pai nem mãe, sem dinheiro para pegar ônibus! Tá doido?

“Ô sargento, me arruma pelo menos uma ficha de telefone para eu chamar alguém!”

O carro da grande empresa estatal em que trabalha um tio chega com o sol ainda alto, apesar da demora, só com o motorista. Apesar de isso fazer com que a insegurança permaneça, talvez porque a vontade de acreditar seja maior, o logotipo da companhia pintado nas portas é apressadamente aceito como garantia de salvo-conduto, e o ex-prisioneiro embarca para a viagem de volta.

Apesar de a longa e cinzenta Avenida Brasil ficar marcada na memória, as cores da vida aparecem novamente, pela janela do carro, e a cidade está surpreendentemente nova e lavada.

O Rio de Janeiro continua lindo.
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* Edgard de Aquino Duarte, Sérgio Landulfo Furtado e Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto são personagens com nome e sobrenome porque estão na lista de presos políticos brasileiros desaparecidos. Citar seus nomes é uma forma de lembrar que é preciso saber o que aconteceu com eles.
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*Site: http://www.andrei.bastos.nom.br

9.1.07

Trem-fantasma (8)

Estação Gorki

ANDREI BASTOS*

O jipe toma direção diferente da vinda e trafega por área edificada, com grande trânsito de soldados. Embora tranqüilizador, diante das tantas surpresas apresentadas, é melhor não relaxar. A escolta e seu prisioneiro param diante da construção maior, o comando do Regimento Sampaio. Algumas salas e corredores, amplos pela arquitetura colonial, separam o desembarque da grande porta de grades da primeira cela coletiva da viagem de trem-fantasma.

Cenário fantástico! Cela e prisioneiros espantosamente iguais à montagem de "Ralé", de Máximo Gorki, dirigida por Gianni Ratto no Teatro República. Indagadores e preocupados com a saúde mental do recém-chegado, sinalizada como mal pelos olhos outra vez esbugalhados, só que agora de admiração, os presos pensam que acaba de chegar mais um enlouquecido pela estação Barão de Mesquita.

É, a visita de Alex parece ter sido decisiva para colocar os pingos nos is e a visão das paredes com limo da ampla cela coletiva é como se fosse a de um palácio, da ralé, mas, diante dos cubículos que conhecera, um palácio de esbugalhar os olhos!

Em lugar das cinco ou seis celas que compunham o que seria a haste horizontal do corredor em T da Barão de Mesquita, ele tinha à sua frente cinco ou seis camas, arrumadas impecavelmente, com lençóis puídos, é verdade, mas limpos. Avelino indica uma das camas do meio e o novo hóspede se senta e coloca sua sacola de poucas coisas na cabeceira. Todos se aproximam e se organizam em torno, sentando-se nas outras camas, para ouvir o recém-chegado. Menos Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto, que fica meio destacado.

O papo é colocado em dia na hora em que chega a janta - sopa de carne com legumes servida em generosa lata de banha, das quadradas e grandes. Junto vêm os pães acompanhando. Outra vez Avelino toma a iniciativa e leva a lata de sopa para servir no prato de plástico de cada um. Zé Maria, o último maluco que chegara ali, produzido pela tortura e nove meses de solitária, conversa com insetos, particularmente com baratas, e é o mais guloso, a despeito de seu corpo franzino, repetindo duas vezes.

Após a janta e a troca da guarda, Freire se aproxima das grades e confabula com o sentinela, um comportamento surpreendente para o novato, que fica mais surpreso ainda quando o companheiro se aproxima e lhe oferece um cigarro, o primeiro desde que entrou naquela bad trip! Um Minister com filtro, que barato! E deu barato mesmo: depois de mais de dois meses sem fumar, ele, que consumia três maços por dia, experimenta na primeira tragada, profunda, que entra pelos pulmões e percorre todas as veias do corpo, uma descarga quase lisérgica que o deixa tonto e entorpecido.

Ronaldo e Avelino não fumam e mantêm seus físicos atléticos com muita ginástica, todos os dias. Apesar da enorme cicatriz que divide seu corpo na altura do abdome, marca deixada por uma rajada de metralhadora que quase o partiu em dois, Avelino faz incontáveis flexões e abdominais sem demonstrar incômodo. Líder estudantil quando cursava a Belas Artes, tinha sido também objeto do desejo de suas lideradas. Ali, com os longos cabelos lisos raspados e o corpo cheio de cicatrizes, certamente não faria o mesmo sucesso.

Talvez por causa das belas-artes, e porque também é garoto da Zona Sul, dois pontos em comum, Avelino se aproxima do novato e puxa longos papos. Pergunta sobre as coisas da vida, de novas ondas e baratos a movimento estudantil, e propõe jogar xadrez, outro interesse compartilhado. As conversas encontram suporte nas partidas intermináveis, noite adentro.

Pelas mesmas supostas razões da aproximação de Avelino, o último doidão da geladeira parece ser discriminado ou visto com condescendência pelos outros, críticos intransigentes da pequena burguesia. Alguns, como Zé Maria, proleta da ALN, chegam ao desdém. Mas a simpatia prevalece e os laços com cada um aparecem e se afirmam.

Tanto quanto o corpo coberto de cicatrizes de Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto, marcas das vezes em que foi arrastado por jipe, aparece seu refinamento cultural, conquistado em dez anos ou mais de formação na URSS. Da mesma forma, lá se forjara a firmeza ideológica que o autorizava a dizer apenas nome e patente, mesmo sob a tortura mais terrível. Nas folhas de papel almaço entregues ao grupo em salas de aula para que cada um escreva sua história, nas interrupções de banhos de sol, ele também só escreve nome e patente. Amazonense de família rica, sem muitos parentes no Brasil, dizem que o coronel do exército soviético e chefe do setor de inteligência da ALN Thomas Antônio da Silva Meirelles Netto também tem mulher e filha, só que em Moscou.

Conta a lenda que o coronel cai quando circula nas altas rodas da capital, particularmente entre as mulheres dos poderosos, das quais desfruta todas as intimidades, incluindo-se aí rotinas, horários e roteiros dos maridos. Falando vários idiomas, seu círculo de amizades coloridas se amplia às embaixadas, e por ser um processo contra ele altamente desmoralizador para o regime, fica preso sem acusação. Também conta a lenda que ele é solto sem explicação, quando já não existe nenhum remanescente do seu grupo, e é metralhado na rua ao sair da casa de um amigo, que meses antes o acolhera, para comprar cigarros.

*Site: http://www.andrei.bastos.nom.br/