29.7.12

McLanche Infeliz

Depois de quase uma hora de espera, o McEntrega 4003-0102 acabou com a alegria dos meus dois netos e uma amiguinha porque deixou apenas metade do pedido. E acabou igualmente com a nossa alegria, pois a nota estava completa. Quando ligamos para reclamar, a infelicidade do lanche se completou com o eficiente e permanente sinal de ocupado.

28.7.12

Alex Polari

Arquivo pessoal
Alex assinando seu alvará de soltura em 1980

Bruno Torturra
Alex logo após conduzir o trabalho de cura na igreja holandesa

Revista Trip, 16/03/2012:

ALEX POLARI

“O mundo só vai mudar quando a gente perceber que somos mais do que matéria… somos luz”

Por Bruno Torturra Nogueira, de Amsterdã

Desde moleque, Alex Polari quer fazer revolução. Primeiro, como militante político na ditadura. Foi perseguido, torturado e preso por nove anos. Solto, descobriu na ayahuasca uma missão ainda maior: mudar a sociedade, e a si mesmo, através de um despertar espiritual. Um dos líderes da maior comunidade do Santo Daime no mundo, com raízes que se estendem do Acre à Holanda, ele anuncia: “O mundo só vai mudar quando a gente perceber que somos mais do que matéria… Somos luz”

Hoje a Holanda é um país de igrejas vazias. Praticamente 70% da população não se associa a nenhuma religião. Metade desse número se diz ateia. Sem párocos ou paróquias, toda cidade tem de capelas a catedrais disponíveis para locação. Festas, reuniões políticas, feiras, exposições, aulas, peças de teatro tomam hoje o lugar de missas e pregações. Mas não naquela noite, quando um templo com mais de 300 anos de idade nos arredores de Amsterdã foi alugado para servir como uma improvável… igreja.

Do lado de fora, neve densa. Onze graus negativos. Debaixo da abóbada, cerca de 150 pessoas, a maioria grisalha, arrumadinha, vestindo branco, espera o convidado de honra. Quando ele chega, um pouco atrasado, dezenas de holandeses se aproximam. Alguns beijam sua mão, muitos fazem questão de saudá-lo em português: “Padrinho”. Alex Polari sorri tímido, um tanto acostumado, um tanto desconfortável no papel de clérigo. Enquanto ele vai tomando seu lugar no altar, uma senhora fleumática espalha um incenso amazônico pelo recinto. Quase sem sotaque, puxa o coro: “Defuma, defumador, essa casa de Nosso Senhor…”. Foi a primeira canção, abrindo mais de cinco horas de cantoria na sessão de Santo Daime.

Alex Polari serviu o chá, tocou o chocalho e puxou o hinário de cura no centro da roda de pessoas. Mas não foi à Holanda apenas para conduzir o trabalho daquela noite. Ele saiu do Céu do Mapiá, comunidade daimista fincada no Acre, para depor em um tribunal em Amsterdã. Depois de dez anos de uma frágil, porém estável, legalidade, um promotor resolveu pedir a proibição do Santo Daime no país. Como representante institucional e internacional da igreja, Polari teve que explicar, pela enésima vez, por que a bebida não é uma droga, mas um sacramento. Não é um alucinógeno, mas um enteógeno (termo para substâncias que “despertam o divino interior”). Que o chá, comprovadamente, não representa risco à saúde pública, ao contrário, tem poder de cura. E que banir a bebida por conta de um alcaloide proibido (o DMT, no caso) é infringir um direito tido como universal nas democracias modernas: a liberdade religiosa.

Muito antes de se tornar um líder espiritual, aliás, Alex Polari de Alverga já precisou depor muitas vezes. Mas sob condições muito diferentes… Foi preso, violentamente torturado, durante a ditadura brasileira. Ele integrava o VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), um dos movimentos de esquerda da luta armada. Participou de assaltos a bancos e sequestrou o embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, antes de cair nas mãos do regime militar em 1971. Viu seu amigo Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel, ser morto na cadeia na sua frente. Tinha 20 anos de idade. Foi solto aos 29.

“Foram anos de profunda reflexão”, ele conta, “em que descobri que não adiantaria lutar por uma transformação social sem uma transformação pessoal, interna. Quando saí eu buscava um caminho diferente.” Um ano depois, em 1981, o caminho apareceu. Foi com um amigo ao Acre para conhecer um obscuro grupo religioso que utilizava um chá psicoativo como sacramento. Bebeu, foi tomado pelos hinos e pelo efeito do chá e teve uma revelação. Viu a história do universo desdobrar-se em sua mente. Vislumbrou o caminho da evolução à dimensão espiritual da vida. Quando aterrissou de volta, era outro. “Minha vida mudou completamente. Tive certeza de que ali era meu lugar.”

Ele foi um dos primeiros a fundar um grupo daimista fora da floresta. Já em 1982 mantinha uma comunidade em Mauá (RJ) e visitava sempre a igreja no Acre. Seu padrinho, o mestre Sebastião, foi o fundador do Cefluris (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra), até hoje a maior e mais reconhecida divisão da igreja do Santo Daime. Sebastião batizou sua igreja com o nome de seu padrinho, o mitológico mestre Irineu, fundador da doutrina do daime da qual as outras linhagens se originaram. Foi de Irineu a revelação original que ecoa até hoje, do Acre a Amsterdã. Quando teve contato, em 1931, com a ayahuasca em um contexto xamânico, viu no poder da bebida a presença do espírito santo. E fez uma releitura cabocla, sincrética, da história de Jesus. Nas palavras de Alex Polari, “nossa igreja é um tipo de cristianismo visionário”.

Alex tornou-se logo peça-chave na difusão e no reconhecimento do daime como uma religião no Brasil. Estudado, articulado politicamente, acompanhou todas as comissões oficiais que foram ao Acre investigar o tal chá que provocava visões e arrebanhava cada vez mais gente fora da floresta. Aprendeu a doutrina, a conduzir trabalhos, a cozinhar o chá, a falar em nome da igreja, a defendê-la diante de juízes e a ser um rosto público de uma malcompreendida religião. Tornou-se, ele também, um padrinho.

Aos 62 anos, com três filhos, dois netos, a mesma esposa de quando deixou o cárcere, segue cada vez mais ocupado em sua missão. É um dos líderes da comunidade do Céu do Mapiá no Acre, cuida de um complexo projeto de agricultura orgânica e sustentável na floresta, conduz sessões, cozinha daime, ajuda como pode a população carente local e viaja para dar apoio às igrejas do Cefluris que se espalham pelo mundo. Apesar de tudo isso, garante não fazer proselitismo de sua igreja. “É uma experiência tão forte, tão reveladora, que precisa ser parte de uma escolha, de uma busca pessoal”, ele explica. Sua missão, na verdade, não é arrebanhar fiéis. Mas garantir a existência de um contexto institucional e seguro para que a experiência espiritual visionária esteja disponível ao ser humano. Isso, para ele, transcende e muito sua religião. É, talvez, uma questão de sobrevivência da espécie.

“Nossa cultura fragmentou, compartimentou demais o conhecimento. Acabamos nos iludindo demais com nossos egos e ficamos no escuro sem uma conexão com o divino, com o sentimento de totalidade”, ele reflete. “É preciso não apenas compreender isso, mas buscar essa reconexão. Porque, no fundo, não vejo uma saída para essa crise planetária fora de uma transformação espiritual.”

Ele diz isso um dia depois da sessão em Amsterdã. Ainda sob o impacto de uma visão que tive sob a força do daime, ficou difícil duvidar: de olhos fechados, e contorcido em cólicas, vi um oceano fractal e revolto que invadia a Terra. Algo me dizia que, enquanto a humanidade destrói o mundo esperando Jesus, quem vai voltar, no fundo, será Noé, para resgatar o que for possível. Abri os olhos e vi aqueles senhores e senhoras branquinhos, venerando um retrato de Irineu, um homem negro, tendo epifanias coletivas com hinos compostos no fundo da Amazônia, em uma igreja sem padre na Holanda. Havia um contraste perfeito, uma retomada arcaica no berço do capitalismo em pleno 2012. Eu me sentia mareado em uma arca da salvação interior. E vendo o capitão Polari ali no meio, de olhos fechados, balançando seu chocalho, eu entendi: por trás da barba e da farda branca, o ex-guerrilheiro ainda quer a revolução.

“Não vejo uma saída para a crise planetária fora de uma transformação espiritual”

Na época em que você era militante político, você já tinha uma busca espiritual?
Acho que não. Só daquele tipo de olhar para um céu estrelado e perguntar de onde vim, para onde vou, etc. Eu vim de uma família católica, mas quando entrei para a luta política isso se perdeu. Começou mais ou menos devagar, em 1966, 67. Mas quando chegou o AI-5, em 1968, foi o grande momento de ruptura. Nessa época eu buscava no exterior a causa das injustiças e da luta por mudanças na sociedade.

Como foi esse período?
Minha geração viveu um momento muito profundo e muito duro da história. Éramos jovens, idealistas e libertários. Era o sonho revolucionário do mito de Che Guevara, maio de 68, primavera de Praga. E também do sonho hippie, do LSD, da liberdade sexual, Marcuse, Reich, tudo isso. Eu escolhi o caminho da militância e entrei de cabeça na luta armada, até o começo de 1971, quando fui preso. Vi companheiros desaparecer no cárcere… mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão.

Mas você não vê uma ponte entre sua luta política, a cadeia e seu caminho espiritual?
Sim, pois foi um processo de reflexão profunda. Primeiro pelo lado de toda aquela opressão social que de repente foi exercida diretamente sobre mim. Passei dos 20 aos 29 anos preso. Fui torturado. Vi um amigo ser assassinado na minha frente. Depois um processo para entender a inviabilidade das nossas teses, rever os velhos mitos da esquerda. Mas havia naquela luta política um prenúncio de um caminho espiritual, pois houve uma entrega, um sacrifício verdadeiro de se oferecer em nome de uma causa. E me trouxe o entendimento de que não dava para lutar simplesmente pelas questões políticas, mas que havia a necessidade de uma transformação interior. Tanto que quando saí da prisão não me reinseri na sociedade, de onde havia parado.

Nunca mais buscou um caminho de ativismo político?
Tive uma ou outra reunião, fui em uns encontros na época da fundação do PT. Mas preferi ir para outro lado. Eu já havia conhecido, durante as visitas de amigos nos últimos dois anos na cadeia, a Sônia, minha esposa até hoje. Quando saí, jé éramos casados e tínhamos um filho pequeno, o Thiago. Nessa busca por uma vida diferente no campo, mais alternativa, mudamos para Mauá.

Quando conheceu o Daime?
Logo no ano seguinte, em 1981, uma coisa fortuita mesmo, quando um amigo trouxe um pouco da Amazônia. Tomei em Mauá, fora da igreja, na natureza. Foi uma coisa forte, parecida com ácido e com outras experiências que já havia tido. Depois um amigo me falou de uma comunidade liderada por um velho patriarca de barbas que tomava ayahuasca. No ano seguinte fui ao Acre para ter contato com o povo de lá. Foi quando senti a força mesmo.

“Foi como se eu tivesse visto todo o filme da história da humanidade, da vida, dos minerais, do big bang… estava pasmo”

E como foi essa experiência?
Tomei a bebida. Sentia aquela corrente de pessoas, a música, o canto, a vibração dos maracás… Foi quando eu sentei em uma cadeira de balanço. Aí abriu uma admiração muito forte. Senti que estava em outro lugar, como os índios dizem, “o salão dourado”. De repente aquela cadeira era como uma cabine de uma nave espacial. E foi como se eu tivesse entrado em um buraco negro e visto todo o filme da história da humanidade, da vida, dos animais, dos minerais, do big bang… Estava pasmo e, ao mesmo tempo, sentindo uma bem-aventurança, uma grandeza muito forte.

O que mudou internamente?
Em um certo sentido aquela visão me transformou. Voltei um outro homem. Um ex-guerrilheiro que toma um chá e canta hinos em louvor a Jesus, Maria e José… acharam que eu tinha pirado. Mas descobri que na espiritualidade não há limite pra nada. Tudo isso ajuda a dar uma quebrada no ego, dá humildade e faz você entender que tudo é possível de alguma maneira. Passei a me considerar um cristão universalista e tenho muita gratidão por como isso me foi passado espiritualmente, como isso me trouxe aonde estou hoje. A mensagem do Jesus histórico, independente da construção teológica, eu vejo como algo profundo no sentido de acessar nossa consciência superior. Quando ele sugere que o reino dos céus está dentro das pessoas mesmo. O sentido maior do ensinamento dele era esse chamado urgente, muito semelhante à urgência dos tempos de hoje.

E depois?
Eu percebi que eu era dali. Que não iria mais arredar o pé. Ali conheci o padrinho Sebastião e comecei a me envolver, voltar mais para a Amazônia, levar daime para Mauá. E fizemos uma comunidade por lá. Começou a chegar muita gente… construímos escola, uma estrutura de agricultura orgânica, e fundamos uma igreja do Santo Daime, uma das primeiras fora da Amazônia. Foi algo muito bonito.

Você estava presente no momento em que o Daime chegou à mídia e ao conhecimento do poder público. Como foi essa “recepção”?
Houve diferentes momentos. O primeiro foi em 1985, nosso sacramento foi proibido sob o pretexto que era droga, continha DMT, etc. Neste mesmo ano foi criado um grupo de estudo e tivemos a sorte de ter gente muito correta, inteligente e aberta nessa comissão, e a bebida foi liberada em 86. Tivemos ainda novos questionamentos ao longo dos anos. Só em 2006 o governo e cientistas estabeleceram a regulamentação definitiva do uso religioso do nosso sacramento. Hoje, as igrejas do exterior estão nessa luta, como aqui na Holanda.

Que tipo de argumento usam hoje em dia contra o daime?
O argumento é sempre o risco à saúde pública. Algo que não faz o menor sentido. Há décadas nós já comprovamos que não existe risco algum dentro de um contexto religioso. Há um volume enorme de pesquisas nesse sentido. O que ocorre, na prática, é que tentam limitar o direito universal da liberdade religiosa por falta de informação. Não reconhecem uma tradição milenar de uso dessa substância para fins espirituais.

Mas o medo das instituições, muito mais do que a questão religiosa ou química, não é o da alteração da consciência?
Sem dúvida… Na nossa sociedade atual isso é uma questão fundamental. Perdemos contato com esse tipo de prática que, em outras culturas, foi parte integrante do saber das grandes civilizações do passado.

Você não fala somente da ayahuasca?
A ayahuasca está em evidência, mas o uso religioso de psicoativos faz parte da humanidade. Se você pesquisar, vai descobrir a importância dos mistérios de Eleusis, por exemplo. Toda a nata do pensamento grego partilhava experiências de alteração da consciência através de uma bebida psicoativa. Boa parte da base do saber ocidental deriva disso. Nos textos sagrados dos vedas é clara a presença do soma, um sacramento que muitos acreditam ser cogumelos mágicos. Se você buscar, vai encontrar algo em todos os continentes e tradições. Ritos desse tipo sempre estiveram entre os humanos e foram, em boa parte, responsáveis pelo que chamamos de religião e cultura. Mas nossa sociedade atual foi se afastando cada vez mais desse tipo de conhecimento. Quem sabe esse não foi o fruto proibido, a maçã da Eva?

A que você atribui essa desconexão da sociedade moderna em relação a esse tipo de espiritualidade?
O Ocidente de um modo geral enveredou muito pela estrada da revolução industrial, do racionalismo, da ciência. Claro que isso tudo teve uma importância muito grande para o desenvolvimento humano. Mas essa noção racionalista criou um mundo extremamente compartimentado, fragmentado. Essas divisões duras nos afastam da noção de que há uma unidade no universo. É exatamente nesse ponto que a experiência visionária se torna tão fundamental. Porque traz à tona, de maneira clara, esse sentimento de totalidade, de pertencimento, que é tão importante ao ser humano.

Essa desconexão foi o que abriu o caminho para o culto ao ego que domina nossa cultura hoje?Eu acho que o domínio do ego é o coroamento, o reconhecimento da cisão absoluta entre a entidade que chamamos de indivíduo e o sentimento de totalidade, que caracteriza a espiritualidade mais profunda. Isso, para mim, é a causa do vazio existencial. E havia até uma filosofia para dar base a isso. Começaram a acreditar que nosso aprimoramento científico nos levaria, inclusive, a uma evolução moral e espiritual. Mas a primeira grande invenção dessa cultura foi o acúmulo de capital, todas as conquistas imperiais, a aliança entre as empresas coloniais e a igreja sedenta por uma uma nova fronteira de evangelização.

É como se a ciência tivesse se colocado como uma força oposta à espiritualidade?
Sim, mas é preciso entender que, quando surgiu esse pensamento, ele tinha um sentido humanista, de questionar a religiosidade dogmática, obscurantista. Acontece que na história recente essa tendência se intensificou. O reducionismo científico e o fundamentalismo religioso são duas partes de uma mesma moeda que limita e coloca a nossa realidade numa camisa de força. Nesses últimos três séculos essa foi a tônica. E não precisa mais ser assim. Eu vejo que, hoje em dia, há um caminho inverso. De certos ramos da ciência que buscam uma reaproximação com o espírito a partir das descobertas recentes. A mecânica quântica, por exemplo, dá novos insights espirituais sobre a realidade mais profunda do universo. E coincide muito com o tipo de conhecimento que sempre esteve disponível às culturas ancestrais que mantinham contato com esse tipo de experiência com as plantas de poder. Quando você vê de perto, essas doutrinas tão antigas estavam falando coisas tão modernas… São ideias arcaicas que trazem respostas atuais.

Uma resposta para o que, exatamente?
Para esse dilema enorme da nossa cultura, da nossa espiritualidade… Essa necessidade de estar sintonizado com o planeta e achar soluções. Temos um sistema cuja lógica é não ter lógica, nem levar em conta os anseios da humanidade que ele deveria servir. Os recursos se esgotam, e a infelicidade aumenta. Fazemos maravilhas tecnológicas, mas tudo indica que se algo não mudar em nossa consciência, o barco pode afundar. Então a resposta que essas experiências oferecem é um caminho para aprofundar a consciência, pois parece que este estado ordinário da mente não está sendo suficiente. E essa experiência direta com o divino oferece não só mais clareza sobre a realidade, mas também um chamado, um aviso para o estado das coisas.

“O domínio do ego é o coroamento da cisão entre o indivíduo e a espiritualidade mais profunda”

Pensando então nesse aviso, no “estado das coisas”, você acha que superar a mentalidade cartesiana, materialista, está se tornando não só uma questão espiritual, mas de sobrevivência da espécie?
Hoje se fala muito do colapso, de uma espécie de apocalipse, de fim do mundo. Mas, antes de se manifestar fisicamente com vulcão, tsunami, acho que o apocalipse começa de forma psíquica. A quantidade de sofrimento, de depressão, de vazio existencial… são sinais de alguma coisa. Dificilmente nós vamos achar uma solução para a crise planetária fora de uma revolução espiritual.

Você não enxerga mais uma solução política, cultural, simplesmente?
Eu acredito que todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século. Primeiro no pensamento crítico em relação ao capitalismo, porque não tinha uma perspectiva espiritual. Muita gente, eu inclusive, apostou todas as fichas na perspectiva de que a luta de classes fosse o motor da história. Que a classe proletária surgida como um rebento desse processo de acumulação de capital tivesse disposição de encarnar o processo de evolução social. Essas esperanças não se tornaram tão generosas e acabaram criando problemas e injustiças muito semelhantes aos que queríamos abolir. Depois dessa esperança de luta social, acho que teve um outro investimento. Como se a gente tivesse passado da luta de classes para uma fé na psicanálise, na libertação da libido e da sexualidade. Como se isso, enfim, fosse a resposta.

Como se a revolução fosse acontecer através do indivíduo?
É, a revolução da psicanálise e a compreensão do papel dos instintos poderiam servir como uma nova utopia, um novo mito para definir o ser humano e as grandes forças orientadoras da psique. Eu acho que isso já é, de alguma forma, um prenúncio do que acredito ser a questão fundamental: a consciência. Mas mesmo dentro dessa visão, nossas neuroses, psicoses, sociopatias aumentaram… Claro que conquistas inegáveis vieram disso. Tanto da luta socialista quanto da libertação sexual. Mas também não nos mostrou a chave do enigma, da transformação mais profunda do sistema. Não gerou um ser humano novo ou um caminho que parecesse realmente promissor.

Mas esse ser humano novo não é um processo em construção?
Sim, mas para seguir evoluindo é preciso dar um novo passo.

E que passo é esse?
Achar um caminho pra reunificar ética, espiritualidade e política. Como gestar isso dentro de um sistema apresentando pane? Como gerar uma coisa viável que não possa ser cooptada pelo capitalismo? Me preocupa que o destino do planeta possa estar na mão de tanta gente que não tem a mínima estatura espiritual para enfrentar as suas responsabilidades históricas. O Obama, se você observar, tem um brilhozinho, mas é um executivo desse sistema todo. Ele é uma metáfora de tudo que a gente tá falando. Da impossibilidade de resolver a coisa dentro dessa mentalidade materialista.

“A consciência é a base onde todo o universo se constrói. E não precisa tomar daime para descobrir isso”

É como se o capitalismo não fosse um sistema, mas uma mentalidade, a impressão de que a lógica do lucro e do acúmulo são leis naturais?
Exato. Isso acontece porque tudo está organizado através de trocas comerciais, de mão de obra, em uma engrenagem que não pergunta nada sobre quais são as necessidades humanas ou naturais. E isso virou a base de nossa sobrevivência cotidiana, mas está nos condenando coletivamente. Eu acho que essa insanidade é sensibilizatória, e que ninguém mais consegue acreditar que o mundo possa dar certo, que estejamos caminhando em uma direção construtiva. E a gente fica num ponto bastante preocupante, pois até a ciência de ponta está começando a soar como profecias apocalípticas.

Mas você acredita que estamos perto de um colapso físico?
Eu também fico nessa dúvida e tem dias que fico mais apocalíptico, outros menos. Realmente não sei quanto tempo a gente tem antes de achar uma solução viável para sustentar nossa espécie neste planeta. Todos que estão pensando na questão ambiental, ou procurando um novo paradigma econômico, uma nova práxis social, uma nova ética… se encontram, na minha opinião, em uma nova visão espiritual da realidade.

Que visão é essa?
Isso é complicado de responder, porque o caminho espiritual é, quase que por definição, algo pessoal. Mas precisamos ter o reconhecimento de que o que chamamos de realidade é uma construção da consciência pensante. E não se iludir e não ter apego a esse falso eu. E aprender a operá-lo muito bem dentro dessa vida, mas preparando seu espaço próprio de pesquisa e investigação para se preparar para a morte. Isso não depende necessariamente de uma religião, mas precisa implicar em uma ética nova, uma nova prática social verdadeiramente altruísta. Mas se dar conta disso, experimentar de fato essa realidade mais profunda, pode ser o trabalho de uma vida toda.

Por que dá tanto trabalho perceber que isso aqui é mais do que mera matéria?
A abordagem da investigação materialista oferece certa lógica. A matéria parece tão organizada, tão lógica, previsível, que existe uma naturalidade em assumir que todo o resto, que não pode ser visto, medido, seja um subproduto. Ou que, simplesmente, não existe. Daí vem a ideia de que a consciência e a vida surgem a partir da matéria, como se fosse uma geração espontânea. Isso é uma concepção que tomou conta do mundo, mas corresponde apenas a um estágio do pensamento e da cultura.

Uma ideia especialmente sedutora para essa era do ego, não?
Dá uma importância enorme ao indivíduo, que se torna um evento raro, insubstituível no universo. Exatamente. É a desculpa de que o homem precisa para se declarar o píncaro da evolução. Mas isso não resiste a uma investigação honesta de quem está à procura de entender a essência da sua existência. Quem aprende a aquietar a mente, a afastar os pensamentos ordinários, consegue sentir uma realidade mais profunda e que existe de fato. Está lá. E entende que todo o resto é uma ficção construída em pensamentos, e se torna uma realidade sofisticada, palpável. Mas que não tem base. Pois a vida é uma coisa muito mais sutil. Na verdade, a própria matéria parece emergir da consciência. Ela está em tudo, é a base em que todo o universo se constrói. E não precisa nem tomar daime para descobrir isso. Culturas milenares, no mundo todo, já haviam percebido isso de muitas formas.

Mas isso se dá quase sempre dentro de um nível pessoal. Como isso se torna um sistema social de fato?
O apego no nível pessoal se torna uma espécie de egoísmo coletivo. Todos precisam se defender uns dos outros, competir, acumular. É o caminho oposto para tornar nossa sociedade viável. A descoberta da consciência como o novo motor da história é o fato mais relevante do nosso tempo. Eu vejo a consciência como base que permeia tudo. Dela emana tudo, inclusive nossa existência. Se nossa mente reinvindica uma existiencia independente, é porque ignora esse fato. Nos identificamos tanto com nosso corpo, pensamentos, que achamos que somos algo separado do todo. Certamente precisamos manter uma identidade própria, mas quando nos aferramos demais a ela e a nossos desejos, isso traz grandes problemas. Essa é a fronteira: uma luta interior que possa trazer uma verdadeira transformação das sociedades. Quando a gente se ilumina por dentro, nosso olhar para fora se torna mais compassivo e altruísta.

De algum modo é como se estivéssemos, de fato, esperando a segunda vinda de Cristo para nos salvar?
Acredito que o que muita gente está esperando já chegou. A segunda vinda, para mim, é essa revelação interna, o retorno do Cristo de cada um, essa espiritualidade enteógena, a experiência de sentir a divindade, a centelha sagrada que habita dentro da gente. E isso talvez seja a luz que precisamos para enfrentar o que vier por aí.

O daime tem esse poder?
Isso é o centro da nossa história, uma experiência espiritual direta. Tem momentos de revelação que às vezes um iogue trabalha a vida inteira, ou várias encarnações, para alcançar. Mas o mais difícil é o compromisso, como você precisa destilar toda aquela experiência espiritual, decupar as metáforas para trazer aquilo pra vida prática, mostrar na sua vida que aquilo tem uma validade, provar isso na sua família, amigos… isso é a espiritualidade. Os mestres fundadores dessa religião, sem nenhuma sofisticação intelectual, sem saber o que era sinapse, física quântica, serotonina, perceberam uma coisa valiosíssima. Que, uma vez em contato com essa realidade transcendental, podemos trazer para a vida prática de uma pessoa. Pode ser um intelectual da Europa ou um caboclo no meio da mata amazônica. Uma mesma linguagem, uma mesma mensagem simples, e que pode significar uma maneira melhor de viver a sua vida, em sociedade, em família, com a natureza.

Vocês buscam novos adeptos?
Tem quase que uma norma na frase de um padrinho nosso: “Convidar é um erro fraternal”. A ayahuasca traz uma experiência muito profunda, um contato com uma dimensão do ser a que não estamos acostumados ou até fugimos dela… A pessoa precisa estar voluntariamente em busca disso para honrar sua experiência.

O daime tem o potencial de se tornar uma das grandes religiões do mundo?
O Santo Daime nunca será uma religião de massas. Mas isso não impede de que possa dar uma contribuição à humanidade. Considero o daime uma religião genuinamente cristã e universalista. E que oferece uma possibilidade de dentro de qualquer outra tradição. Muita gente se apropria do sacramento porque ele iluminou ainda mais a fé que a pessoa já tinha. Temos muçulmanos, hindus, rabinos que participam de nossas cerimônias.

Como você está vendo essa expansão rápida da ayahuasca no mundo, do chamado xamanismo urbano, o nascimento de outras cosmologias a partir de experiências com DMT?
Eu acredito que essa medicina tem algo a dizer para o mundo hoje. Mas são dois processos. Um é o crescimento das tradições religiosas ligadas ao uso da ayahuasca. O outro lado é a experiência psiconáutica de gente curiosa. A busca, de toda forma, é válida. Eu ainda acho que dentro de um contexto religioso é mais seguro para a maioria das pessoas. E é a forma original.

Mas para muita gente a própria ideia de igreja, de doutrina, é algo a ser superado nessas experiências visionárias
Sei que existe, da parte de muita gente, uma certa aversão à parte institucional, à ideia de igreja. Entendo e até concordo em parte. A experiência histórica de religiões institucionalizadas não são de todo boas… Mas, principalmente no nosso caso, existe uma necessidade muito grande de manter uma instituição oficial para poder dialogar com o poder oficial e garantir uma legitimidade, e ajudar a garantir que o sacramento siga acessível a todos, mesmo os que não se identificam necessariamente com nosso formato de ritual. Por isso é tão importante valorizar esse interesse recente pelo estudo das vias enteógenas, essa investigação científico espiritual da natureza profunda da consciência. Somos uma espécie muito recente, o neocórtex cerebral tem apenas 500 mil anos. A própria marcha da evolução aponta que a consciência é o campo de batalha. O importante é que se difunda essa experiência de contato direto com Deus. Só vai fazer bem para o mundo.

Mas isso soa um pouco etéreo, metafísico demais para resolver problemas tão práticos, não?Acredito mesmo que, para encontrar uma alternativa prática, temos que abrir a mente e o coração para essas transformações. Até porque todos os outros paradigmas de realidade faliram. Claro que tem gente que está esperando uma nave espacial chegar para salvar todo mundo. Penso que nossa nave já está pousada no meio da floresta. Do meu ponto de vista, a espiritualidade é na prática, dentro da sua vida interior e no trabalho social. É pensar grande e agir pequeno. É o nosso laboratório do futuro. Em um raio de alguns quilômetros, dá mesmo para transformar as coisas.

Como é esse trabalho?
Eu mesmo tenho me dedicado também nesses últimos 20 anos à agricultura sustentável. Temos feito um trabalho de ponta lá, até como forma de buscar essa saída econômica viável, de produzir alimentos e manejar a floresta de modo a mantê-la de pé. A gente trabalha com agricultura de praia, como no começo da agricultura, no Eufrates, no Nilo. Quando o rio enche, o sedimento fertiliza a terra, e nas vazantes você planta todo tipo de cultura nas margens. E tem uma produtividade quase similar à da agricultura mecanizada fertilizada, totalmente natural e a baixo custo. Estamos esperando uma política pública que incentive isso. Conseguimos algumas fundações ligadas a irmãos nossos, da irmandade internacional. Em 2007 e 2008, com a Fundação Banco do Brasil, a gente fez um grande projeto pra criar polos de beneficiamento. A outra parte do projeto é trabalhar com sistemas agroflorestais, replantando a floresta com muitas espécies comestíveis. Adensando a mata original e inserindo outras espécies. É a única saída que vejo para a Amazônia.

“Na selva você ganha uma dimensão direta da salvação: é não pisar em cobra, plantar macaxeira, fazer farinha…”

É a tal ponte entre política e espiritualidade?
É curioso, foi dentro do Daime que resgatei minha herança de animal político em um sentido mais pleno. A experiência da militância era muito abstrata, sem contato com a realidade social concreta. Essa minha descoberta espiritual também foi a minha descoberta da Amazônia, do povo brasileiro, ribeirinho, do calor humano, da miséria. Se tornou não só um laboratório de reflexão espiritual como um trabalho social grande. Não é fácil sobreviver na contramão do sistema, fazer uma comunidade sustentável no meio da Amazônia, num lugar de dificílimo acesso. Mas nossa comunidade espiritual, a do padrinho Sebastião, parece menos um ashram do que um canteiro de obra. Todo mundo trabalhando sem parar, rezando, tomando daime, fazendo mutirão. Na selva você ganha uma dimensão muito direta da salvação: tomar cuidado com cobra, plantar macaxeira, fazer farinha. É como o padrinho Sebastião falava: “Povo de Deus, acampado em seus lugares, sempre atento”.

Existe uma receita para a iluminação?
O padrinho Sebastião também dizia: “tem que unir o positivo com o negativo para haver luz”. Isso é uma lei da iluminação, seja para acender uma lâmpada, quando liga um interruptor, seja para nos iluminar espiritualmente. Tem que trabalhar sua anima, seu inconsciente, seu lado escuro, e colocar ele em contato com seu Eu Superior. Daí vem a luz…

Na Pauta: Jornalistas Escritores

Encontro com Sidney Rezende e Altamir Tojal no SJPMRJ

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (SJPMRJ), em conjunto com o Clube de Comunicação, promovem o “Na Pauta: Encontro com Jornalistas Escritores”, uma reunião com coleguinhas de imprensa que investem na atividade literária. O primeiro encontro terá a participação de Altamir Tojal, jornalista, diretor da SPS Comunicação e autor de dois livros, e Sidney Rezende, jornalista e apresentador da GloboNews, também com dois livros publicados.
O evento vai contar com um bate-papo entre os dois jornalistas e os presentes, e será mediado por Terezinha Santos, Diretora do SJPMRJ e Presidente do Clube de Comunicação. Logo após, ocorre a noite de autógrafos. O primeiro encontro acontece no próximo dia 14 de agosto, às 19h, no auditório do Sindicato (Rua Evaristo da Veiga, 16/17º, Cinelândia, Rio). A entrada é franca.

Altamir Tojal

Natural do Rio de Janeiro, jornalista formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), tem especialização em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Foi repórter em O Globo, no Jornal do Brasil e na Revista IstoÉ. É autor do romance “Faz que não vê”, um thriller político, publicado em 2006, pela editora Garamond e do livro de contos “Oásis azul do Méier”, lançado em 2010 pela editora Calibán. Atualmente, é diretor da SPS Comunicação e editor do site Este mundo possível. (www.estemundopossivel.com.br).

Sidney Rezende

Matogrossense do sul, jornalista há 27 anos. Apresenta telejornais da GloboNews e o programa Conta Corrente. É professor da PUC e UCAM, editor chefe do portal www.sidneyrezende.com e diretor da agência SR Ideias. Foi um dos fundadores da rádio CBN e âncora do Jornal do Rio (Rede Bandeirantes) e comentarista do Sem Censura (TVE). É autor dos livros “Ideário de Glauber Rocha”, lançado em 1987, pela Philobiblion, da Civilização Brasileira e “Deve ser Bom ser Você”, publicado em 2002, pela Futura, do Grupo Siciliano.

21.7.12

Idílica estudantil

Alex Polari de Alverga

Nossa geração teve pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela a nossa procura
ah! moça, como foi bela a nossa procura
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
a gente se corta.

17.7.12

Depoimento de César Benjamin à Comissão da Verdade da OAB/RJ

9.7.12

Cidadania e Inclusão Social – Folha ZN 19

Folha ZN, 09/07/2012:

Cidadania e Inclusão Social
ANDREI BASTOS

Na Cúpula dos Povos

A RIO+20 DEIXOU A DESEJAR, embora tenha sido a conferência das Nações Unidas de maior acessibilidade. Afinal, a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, tratado internacional ratificado por mais de 100 países, tem equivalência de Emenda Constitucional no Brasil desde 2008. Mas foi na Cúpula dos Povos, organizada pela sociedade civil em paralelo à Rio+20, que se apresentou a proposta, ainda inovadora, de se priorizar a criança com deficiência no processo de inclusão. O texto “Sustentabilidade e criança com deficiência”, elaborado por mim e Claudia Grabois, foi encaminhado no evento Novos Direitos e Paradigmas, da OAB/RJ (leia a íntegra no meu blog).

A verdade sempre aparece
DEPOIS DE “MEMÓRIAS DE UMA GUERRA SUJA”, livro de Rogério Medeiros e Marcelo Netto com o relato de Cláudio Guerra, ex-carrasco da ditadura civil-militar brasileira, é lançado “Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”, em que o repórter Leonencio Nossa apresenta um levantamento sobre o extermínio de guerrilheiros e camponeses, desmentindo a versão dos militares, de documentos queimados, identificando os oficiais que comandaram a matança e deixando claro que foi uma decisão de governo, de presidentes e ministros do Exército.

Levantando notas e astral
ATABAQUES, ZABUMBAS E ACORDEONS são as armas que estão sendo usadas em comunidades muito pobres da ZN e da ZO, no Caju, Favela do Sapo, Irajá e Vila Kennedy, entre outras, para reverter a situação difícil e extremamente negativa em que se encontram suas escolas primárias. A ideia, levada a cabo por Marciano da Silva e Mauro de Mattos Ferreira, da Oribhe Produções Artísticas e Culturais, é despertar o interesse dos alunos pela vida escolar com atividades culturais populares, que também proporcionam aprendizado e estimulam atividades em grupo.

ANDREI BASTOS é jornalista e integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.
Blog: www.andreibastos.com.br/blog – Email: contato@andreibastos.com.br

***
Clique aqui para edição 19 da Folha ZN na web.

Clique aqui para download de PDF da edição 19 da Folha ZN.

8.7.12

O PCB-PPS e a Cultura Brasileira

Lançamento e debate no Teatro Oi Casa Grande

Na próxima terça-feira, dia 10, às 19h30, no Teatro Oi Casa Grande (Avenida Afrânio Melo Franco, 290 – Leblon), será promovido um debate político-cultural e o lançamento do livro O PCB-PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos, do historiador carioca Ivan Alves Filho, A iniciativa é da Fundação Astrojildo Pereira, que editou a obra.

Como se sabe, a política vem estimulando a cultura e mesmo a reflexão filosófica mais profunda, desde pelo menos a Revolução Francesa, para nos atermos ao início da chamada modernidade. Não foram poucas as obras literárias e artísticas escritas no chamado calor da luta. Naturalmente, a atividade cultural não se reduz a essa ou aquela ideologia, mas ela tampouco pode ser desligada do seu contexto histórico.

No Brasil, não seria muito diferente. Afinal, este é o país das sínteses, a terra da pluralidade, o que envolve ainda a cultura, uma prática fundamentalmente agregadora e inclusiva. Assim, temos o tradicional e o moderno reunidos por ela. A reflexão e a ação também. A junção do erudito com o popular. E ainda a fusão de experiências e representações dos mais diversos horizontes, senão continentes. Tais características contribuíram para forjar a cultura brasileira, tal qual nós a conhecemos hoje.

O PCB, nascido há 90 anos e do qual se originaria o PPS – entendeu a importância da cultura no seu processo de aproximação com as pessoas. Até porque, muito perseguido ao longo da nossa conturbada história republicana, o partido não tinha, por momentos, como se apresentar com rosto próprio aos brasileiros. Os intelectuais e os artistas faziam isso por ele. Chegavam aonde o partido não podia chegar.

Nomes do peso de Oscar Niemeyer, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar, Djanira, Portinari, Rachel de Queirós, Di Cavalcanti, Solano Trindade, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Plínio Marcos, Joel Rufino dos Santos, Dias Gomes, João Saldanha, Darcy Ribeiro, Luiz Werneck Vianna, Gianfrancesco Guarnieri, Gonzaguinha, Mércio Pereira Gomes, Mário Lago, João Batista de Andrade, Vladimir Carvalho, Sergio Arouca, Mário Schemberg, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Edison Carneiro, Astrojildo Pereira, Oswald de Andrade e Pagu, entre tantos outros, pertenceram ao mais antigo partido surgido no Brasil. Eis o que transformou o PCB-PPS em uma espécie de partido da inteligência brasileira, criando jornais, companhias de teatro e cinema, fomentando revistas, inaugurando cine-clubes, organizando seminários pelo país afora, durante décadas a fio.

Como a importância da cultura só faz crescer, nesses tempos em que o conhecimento assume o papel de verdadeiro meio de produção -, eis o que torna a leitura deste livro ainda mais atual e atraente.

Acessibilidade: legado da Rio+20

Inclusive, 02/07/2012:

Acessibilidade: legado da Rio+20

“A partir do Modelo Brasileiro de Governança da Acessibilidade e de sua execução para a Rio+20, a ONU passará a adotar novos parâmetros de acessibilidade em suas atividades e conferências.” – Magnus Olafsson (Diretor de logística de conferências e documentos da ONU, Seminário Acessibilidade em Grandes Eventos Mundiais: a Conferência Rio+20, Parque dos Atletas, em 16 de junho de 2012)

Por Izabel de Loureiro Maior *

São poucas as oportunidades de participar intensamente de um marco de mudanças e evolução cultural. Entretanto, quando se acredita, surgem importantes feitos para a coletividade e bons momentos nas nossas vidas. É sobre isso que pretendo falar: um pouco da minha vivência com o Decreto da Acessibilidade, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20. Desejo expressar meus agradecimentos ao Comitê Nacional de Organização da Rio+20, secretariado pelo ministro Laudemar Aguiar e aos militantes da Coordenação de Acessibilidade e Inclusão, conduzida pela querida conselheira Márcia Adorno, com os quais venho trabalhando desde 2011.

Rumo à Acessibilidade

A conquista da acessibilidade para todas as pessoas, com foco nas pessoas com deficiência, começou faz muito tempo. De acordo com o livro “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil” (SEDH/SNPD e OEI, 2010), teve início no século XIX, com os atuais Instituto Benjamin Constant e Instituto Nacional de Educação de Surdos. Depois vieram as conquistas dos movimentos de pessoas com deficiência intelectual e as associações para e de pessoas com deficiência física. Mais recentemente, associaram-se as pessoas com deficiência múltipla. A luta pela inclusão/acessibilidade valeu-se do “Ano Internacional da Pessoa Deficiente, 1981”, tomou impulso, virou debate na Assembleia Constituinte e entrou na Constituição de 1988. Fortaleceu-se nas reivindicações do movimento social organizado e mereceu as Leis 10.048 e 10.098/2000, iniciativas do Congresso Nacional e da então Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE, respectivamente.

Decreto da Acessibilidade

A partir daí surgiu uma demanda nada fácil de atender: regulamentar a Acessibilidade a fim de que deixasse de representar uma das maiores barreiras à inclusão. Aceitei o desafio de facilitar a convergência do conhecimento acadêmico e a expertise também técnica dos usuários diretos. Foram horas de trabalho coletivo durante quase dois anos, com direito à consulta pública e grandes resultados. A CORDE, a todo vapor, coordenou a elaboração do Decreto nº 5.296/2004, conhecido como o Decreto da Acessibilidade. A esperada regulamentação trouxe novidades, prazos, necessidade de normas técnicas, de estudos, de alterações fiscais e de grande divulgação para ganhar músculos. Entre as questões pouco conhecidas, ou oferecidas de forma insuficiente, estão: legenda, audiodescrição, interpretação em Libras, sinalização, sítio eletrônico acessível, transporte público, espaços, mobiliário urbano acessível, bem como tecnologia assistiva. Começou a preocupação com iniciativas que fizessem a norma ganhar existência prática.

A Convenção da ONU

Em paralelo, de 2002 a 2006, o processo de elaboração de um texto geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência fez surgir a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD. Para mim, foi uma nova oportunidade de acompanhar o processo, coordenando-o no tocante à contribuição e à posição firme do país nas sessões da ONU. Do aprendizado com o Decreto da Acessibilidade emanou a força para as negociações do Art. 9 e diversas outras inserções sobre o direito à Acessibilidade. O peso da responsabilidade aflorou nas incontáveis reuniões e contatos para a ratificação do tratado. Inicialmente dentro do Executivo e por pouco nos escapa o apoio à sua adoção como emenda constitucional. Passamos ao Legislativo, onde os corredores, gabinetes e o cafezinho dos parlamentares foram tomados por militantes decididos a fazer a diferença. Enfim, a Convenção recebeu o status desejado por todos com o Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, há quatro anos. Novamente outra etapa de convencimento interno para ser assinado o Decreto nº 6.949/2009, o qual completa a ratificação da CDPD para os efeitos no Brasil. Era também a nossa gestão na CORDE.

Nada sobre Nós sem Nós

De maneira progressiva, mais lenta que a nossa pressa e necessidade, mais atrasada que os longos prazos concedidos, a Acessibilidade se inseriu na vida da sociedade brasileira. As tradicionais forças econômicas ainda estão por ser completamente superadas. Segue a luta sem trégua por orçamento e oferta de tecnologia de ponta. A autodeterminação se mostra no “Nada sobre Nós sem Nós”. O jogo começa a virar.

A área privada, as esferas de governo e o movimento social organizado seguem em constante tensão para que a Acessibilidade se consolide. Iniciativas pontuais, contadas nos dedos, vão-se transformando em experiências e práticas mais frequentes, em ambientes, rotinas e serviços com Acessibilidade. A conquista da inclusão se torna mais próxima e viável. Afinal, Acessibilidade é meio indispensável para o alcance da inclusão e do desenvolvimento sustentável.

As campanhas governamentais acessíveis

A Acessibilidade foi parar no Youtube com a campanha Iguais na Diferença, pela Inclusão das Pessoas com Deficiência.



Em trinta segundos, essa inovadora publicidade de utilidade pública trazia audiodescrição, legenda e Libras. Foi também difundida na tela da TV aberta.

O videodocumentário “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil” (SEDH/SNPD e OEI, 2010) resgata cerca de 150 anos, apresentando-os em português, espanhol e inglês, além de permitir a escolha do recurso de Acessibilidade a ser usado. Acessibilidade nos depoimentos a respeito de uma época sem Acessibilidade.

O vídeo Cidade Acessível é Direitos Humanos, realizado em 2010 e lançado em 2011, é uma apresentação didática de cidades inclusivas, com o intérprete de Libras na cena e os demais recursos de comunicação.


Mais recente, o vídeo institucional do lançamento do Plano Viver sem Limite, 2011, mantém a Acessibilidade em foco, com a participação de pessoas com deficiência já lançadas na mídia por seu trabalho.


Os eventos específicos

Chega-se à era das grandes conferências dos direitos das pessoas com deficiência em 2006 e 2008 – Acessibilidade: você também tem compromisso e Inclusão, Participação, Desenvolvimento: um novo jeito de avançar. Antes das conferências começaram os encontros nacionais, de 2003 a 2010, capacitações, cursos e publicações, portais, blogs e listas de discussão.

Era preciso que um grande número de pessoas conhecesse as leis e os recursos de Acessibilidade para saber que tem o direito a eles em seu dia a dia, multiplicando o que foi conquistado para ter mais Acessibilidade para as pessoas com deficiência. Em 2012, caberá à III Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência igualar-se ou superar os eventos anteriores e o “padrão Rio+20”.

Rio 92 – Meio Ambiente e Desenvolvimento

Há vinte anos, as associações das pessoas com deficiência reuniram-se em uma tenda no Parque do Flamengo, onde se falava de temas diversos relativos às suas tradicionais bandeiras de luta. O meio ambiente era o carro-chefe da conferência, e sustentabilidade ainda era um conceito em aberto. Em 1992, o movimento social do segmento tinha pouco mais de dez anos, as leis ainda não haviam sido regulamentadas, a tecnologia era pouco conhecida, bem como muitos recursos de Acessibilidade não existiam. Ninguém falava em estenotipia computadorizada para legenda em tempo real ou em audiodescrição, por exemplo.

Apesar das barreiras representadas pela falta de Acessibilidade nos transportes e no entorno, vários pessoas com deficiência participaram dos debates coordenados pelo Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro e seus parceiros. Foram tirados encaminhamentos e ficou marcada a presença do segmento naquele grande evento mundial.

Rio+20 Acessível para Todos

Perde-se a conta de quantas vezes ouvimos dizer que decretos e convenções não saem do papel, não são cumpridos e não chegam a ser cobrados. Aconteceu tudo isso com a obrigação de prover recursos de Acessibilidade física, comunicacional, na informação e tecnologias assistivas para a autonomia, facilitação e bem-estar das pessoas com deficiência. Contudo, acreditando tratar-se de uma falsa verdade, nos propusemos a transformar a Rio+20 em uma grande iniciativa para afastar entraves e garantir a Acessibilidade, dentro do que pudéssemos. Essa foi a aposta.

A determinação política pró-Acessibilidade redundou no convite do Comitê Nacional de Organização (CNO) da Rio+20 feito a mim. Foi um presente valioso, com a chance de projetar Acessibilidade a partir do Brasil para o mundo. Como consultora da Coordenação de Acessibilidade e Inclusão do CNO, realizamos um trabalho diferente, o qual confirmou que o Decreto da Acessibilidade e a Convenção da ONU são a base legal suficiente para garantir Acessibilidade. Esses documentos foram adotados em todos os termos de referência destinados à contratação de serviços e recursos de Acessibilidade.

Também recebi do CNO a oportunidade de convidar e indicar especialistas para uma equipe de consultores em Acessibilidade, o que assegurou a qualidade das etapas de planejamento, operacionalização e monitoramento de cada aspecto do evento.

Desse modo, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, realizada de 13 a 22 de junho de 2012, na Cidade do Rio de Janeiro http://www.rio20.gov.br/, teve como um dos eixos a Acessibilidade. A Conferência acessível aconteceu em grande estilo, dando visibilidade e possibilidade concreta de as pessoas com deficiência intervirem nos debates naquela que é a maior conferência já realizada, 46 mil participantes. A Rio+20 prestou-se também a ser o laboratório de implementação da Acessibilidade para os megaeventos que o Rio de Janeiro e o Brasil irão receber até 2016.

As diferenças da Rio+20

As áreas da Rio+20 preparadas com Acessibilidade foram essencialmente os cinco pavilhões e as tendas no Riocentro, além da Arena da Barra, Parque dos Atletas e Pier Mauá. Para deixar claro, o evento Cúpula dos Povos, realizado no Parque do Flamengo e a exposição Humanidade 2012, no Forte de Copacabana, são de responsabilidade de seus organizadores da sociedade civil.

Na fase de preparação da Rio+20, a proposta de Acessibilidade se incorporou a todas as áreas da logística da conferência. Foi o melhor exemplo de transversalização do tema e com resultados positivos. Acessibilidade no momento presente, sem depender de prazos, pois é um direito constitucional das pessoas com deficiência. Acessibilidade, tanto quanto foi possível, saiu do papel para incluir as pessoas com deficiência no cenário do desenvolvimento sustentável. (http://www.rio20.gov.br/rio/acessibilidade/metro-do-rio-sera-100-acessivel-ate-o-final-de-2011/?searchterm=acessibilidade)

É emblemático o painel com a logomarca da Rio+20 em relevo e sua descrição em Braille ou formato digital acessível: mostra os três componentes do desenvolvimento sustentável – inclusão social (vermelho), crescimento econômico (azul) e proteção ambiental (verde), ligados em forma de um globo. As três cores se mesclam, indicando a interligação dos diferentes componentes. As palavras “Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável” aparecem ao lado do logotipo juntamente com o nome informal do evento: “Rio +20″.

A Rio+20 pretendeu acelerar a discussão do Desenvolvimento Sustentável na vida de cada pessoa. As pessoas com deficiência fazem parte desse tema, mas ainda não se conseguiu cumprir o Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que diz “… g) Ressaltando a importância de trazer questões relativas à deficiência ao centro das preocupações da sociedade como parte integrante das estratégias relevantes de desenvolvimento sustentável”.

Essa é mais uma razão para disponibilizar os recursos de Acessibilidade à participação desse público com autonomia e qualidade, em bases iguais com as demais pessoas. Somente assim as próprias pessoas com deficiência poderão contribuir com ideias e ações para o Desenvolvimento Sustentável. A presença de pessoas com deficiência no documento final da Rio+20 é por demais tímido e sem relevância efetiva.

Nos Diálogos do Desenvolvimento Sustentável e nas reuniões paralelas, tal como nas plenárias de alto nível, a Rio+20 trabalhou com os três pilares do desenvolvimento sustentável: inclusão social, crescimento econômico e proteção ambiental.

Os eixos da Conferência foram: Sustentabilidade, Acessibilidade e Conectividade. A sustentabilidade foi assegurada por diversas iniciativas como materiais certificados, combustíveis renováveis, objetos manufaturados com componentes reciclados, compensação da emissão de carbono, aproveitamento de água e resíduos, entre outros. A conectividade esteve presente na rede de internet sem fio em todos os ambientes oficiais, nos totens acessíveis com as informações essenciais e a programação das atividades. A conectividade permitiu realizar uma conferência com o conceito de PaperSmart, que significa a impressão em papel sob demanda, a qual podia ser também em Braille. Menor uso de papel é uma atitude a favor do desenvolvimento sustentável – proteção ambiente.

A Plenária do Riocentro, para 2.200 delegados e convidados de 193 países, com oito telões, foi o espaço para o qual foram veiculadas as imagens e o áudio com Acessibilidade, os mesmos das transmissões por webcasting para o mundo, e dessa vez estavam presentes os recursos de Acessibilidade. Além do auditório das plenárias, quatro grandes salas de eventos no Riocentro e um auditório na Arena da Barra, no Parque dos Atletas e no Pier Mauá, também foram equipados com legenda, interpretação de língua de sinais e audiodescrição, no período de 13 a 22 de junho.

Acessibilidade arquitetônica

As soluções arquitetônicas de Acessibilidade representam o maior investimento já realizado em um grande evento mundial no Brasil. A montagem foi acompanhada por consultores do CNO para apresentar soluções com Acessibilidade. Somente para a facilitação da mobilidade, em especial para cadeirantes no Riocentro, foram construídas passarelas com rampas nas laterais, perfazendo 792 metros que interligaram os pavilhões do Riocentro. Muito interessante foi observarmos pessoas sem deficiência utilizando os acessos construídos, confirmando que a Acessibilidade é universal. Diversas rampas foram feitas, com destaque para aquela em dois níveis do Mezanino do Pavilhão 5, que não é servido por elevador.

Merece destacar que as estruturas fixas do Riocentro contam com banheiros acessíveis. Entretanto, para as tendas do Centro de Convenções e no Parque dos Atletas foram providenciados banheiros químicos. A oferta do mercado não supriu adequadamente o quantitativo necessário e faltaram banheiros acessíveis nas áreas fora do Riocentro. Esta é uma situação que pode se repetir em outros eventos de grande porte ou em eventos simultâneos.

Ainda nas intervenções físicas pode-se enumerar: piso tátil da entrada aos help-desks, sinalização com contraste entre fundo e letras e símbolos, vagas de estacionamento demarcadas, mapas táteis, entre outras adaptações, de acordo com o manual de orientação aos expositores e às produtoras do evento. Nos help-desks específicos havia o atendimento especializado para as pessoas com deficiência, inclusive quanto ao empréstimo de cadeiras de rodas e o serviço de acompanhamento.

Acessibilidade na comunicação e informação

A Rio+20 colocou no Riocentro uma quantidade de recursos de Acessibilidade na comunicação e na informação que foi muitas vezes maior que a soma das duas Conferências Nacionais dos Direitos da Pessoa com Deficiência (2006 e 2008), eventos predominantemente direcionados a esse público. Um extraordinário avanço. Relembrando, a I Conferência contou com 16 intérpretes de Libras para três dias, transporte acessível em coletivos e vans em quantidade insuficiente, pessoal de apoio – aquilo que era possível em Brasília na época. A II Conferência introduziu a legenda em tempo real nas plenárias, sendo o primeiro grande evento nacional a fazê-lo.

Na Rio+20, evento não dirigido ao público de pessoas com deficiência, houve a estreia do recurso audiodescrição nas grandes conferências do Brasil e da ONU. Uma equipe de 26 audiodescritores transmitiram as informações em português e inglês, garantindo o direito das pessoas com deficiência visual. Foram 200 horas na plenária e 800 horas em 4 salas). A audiodescrição foi oferecida em português e em inglês.

O desenvolvimento do sítio eletrônico oficial da Rio+20, seguiu as diretrizes mais atuais em matéria de Acessibilidade para sítios do governo (eMAG-3), com atuação permanente de um consultor do CNO. Entretanto, grande parte do conteúdo é alcançada por links para o portal da ONU, o qual ainda não é acessível. A Rio+20 veio para provocar a necessidade de mudanças nos sites do Sistema ONU. (http://www.rio20.gov.br/accessibility-info)

Em números, a Rio+20 contou com o pool de 19 intérpretes de Libras e 3 intérpretes de Sinais Internacionais no Riocentro. Foram essas pessoas que, em 100 horas de interpretação de Sinais Internacionais e 500 horas da Língua Brasileira de Sinais – Libras levaram as informações do Riocentro ao vivo para o mundo. Trata-se de mais uma conquista pioneira na história da ONU conseguida na Rio+20. A legenda em tempo real foi usada na plenária e em mais 4 salas, perfazendo 1000 horas de transmissão e português e inglês. No total, os 3 serviços, contratos por editais específicos e concorrências separadas, somaram 2300 horas.

Para que o acesso à informação se desse em bases iguais de oportunidades, além dos totens acessíveis, que eram usados por todos os participantes (inclusive pessoas cegas) em substituição ao material impresso, o mesmo conteúdo estava em 100 tablets à disposição das pessoas com deficiência credenciadas para o Riocentro.

O material impresso que podia ser entregue sob demanda igualmente era impresso em Braille, graças à parceria com o Instituto Benjamin Constant, que manteve pessoal especializado e impressoras próprias no Riocentro.

Áreas fora do Riocentro

Em cada uma das áreas extra-Riocentro – Arena da Barra, Parque dos Atletas e Pier Mauá – um auditório do CNO foi montado com a presença de intérpretes de Libras (246 horas), audiodescritores (246 horas em inglês e 246 horas em português) e equipamentos para a legenda (246 horas) criando as condições adequadas a seminários e fóruns para os quais os organizadores tivessem solicitado esses recursos. É importante ressaltar que os serviços de legendagem no Brasil são insuficientes e necessitam de maior capacitação para sanar eventuais dificuldades na metodologia e na execução. Fica mais este alerta para orientar os próximos grandes eventos. Em suma, foram 984 horas de serviços de Acessibilidade na comunicação para pessoas surdas, com deficiência auditiva e com deficiência visual.

Nas áreas fora do Riocentro, também a parte física mereceu tratamento de Acessibilidade, tanto nas tendas de exposição e auditórios como em espaços de alimentação e outros, por meio das orientações técnicas do manual dos expositores, e supervisão direta dos arquitetos consultores do CNO.

Transporte acessível

O transporte acessível é um ponto nevrálgico em qualquer evento de grande porte. Embora uma parcela da frota de ônibus no Rio seja tenha Acessibilidade, outras restrições à mobilidade urbana (calçadas inadequadas) indicaram que deveria ser contratado serviço de atendimento porta a porta. A Rio+20 contou com dez táxis e uma van (comporta 4 cadeirantes) acessíveis. A solicitação desse transporte era agendada e foi aprovada por quem utilizou os veículos.

Voluntários capacitados e pontos de informação

O contato do público com os organizadores de um grande evento começa pela recepção e as informações prestadas.

A Rio+20 inovou na capacitação de 1.500 voluntários, dos quais 1.200 trabalharam em todas as áreas supervisionadas pelo CNO, principalmente jovens, e entre eles 49 pessoas com todos os tipos de deficiência, sendo 12 com deficiência intelectual. A meta desejada de participação de voluntários com deficiência era muito maior, mas percebeu-se a dificuldade em fazer a informação chegar até eles, e, mais difícil ainda, esclarecer que haveria acessibilidade para a capacitação durante a Rio+20. Os voluntários eram moradores de comunidades que estão participando de projetos sociais.

O programa da capacitação dos voluntários incluiu tópicos de desenvolvimento sustentável, direitos humanos, voluntariado e orientação de como lidar com as pessoas com deficiência. Os voluntários aprenderam sobre o cão-guia, cadeira de rodas, abordagem das pessoas e cordialidade. Eles trabalharam com monitores e supervisores, entre eles duas pessoas com deficiência e alguns voluntários que tinham conhecimento sobre Libras.

Os voluntários atenderam nos help-desks e foram elogiados diversas vezes por participantes sem e com deficiência. A capacitação foi planejada para passar conteúdo que envolvesse os jovens e transmitisse a proposta de sustentabilidade.

Eventos paralelos sobre Acessibilidade

Para divulgar temas importantes sobre Desenvolvimento Sustentável e as pessoas com deficiência, o CNO apoiou e seus consultores participaram de três seminários, que aconteceram nos auditórios com acessibilidade na Arena da Barra e no Parque dos Atletas.

O seminário “Turismo Cultural Inclusivo no Contexto da Sustentabilidade” foi organizado pela consultora Regina Cohen em parceria com o Núcleo Pró-acesso da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e foi realizado no dia 13 de junho, na Arena da Barra. A proposta era explorar a interligação entre inclusão, deficiência, turismo cultural, Acessibilidade e sustentabilidade. A cultura como elemento importante do turismo, inclusive nos grandes eventos que trazem público para consumir produtos e espaços culturais com Acessibilidade. Virgina Kastrupp e Isabel Portela apresentaram a criação da Rede de Museus Acessíveis. Foram mostradas experiências de contato com a cultura para as pessoas com deficiência e Acessibilidade no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Museu de Arte Moderna, nos museus da Fundação Roberto Marinho e na Casa da Ciência da UFRJ, por Felipe Capelo, Carlos Eduardo Gomes, Stella Savelli. Regina Cohen apresentou Acessibilidade em museus e sítios tombados pelo Patrimônio e Natália Melo e Cristiane Duarte abordaram Acessibilidade no turismo em Ouro Preto, experiências e desafios. O evento contou com os recursos de Acessibilidade.

O seminário “Acessibilidade em Grandes Eventos Mundiais: a Conferência Rio+20” foi organizado pela consultora Izabel Maior, docente da Faculdade de Medicina da UFRJ, e ocorreu no auditório Multiuso do Parque dos Atletas no dia 16 de junho. Participaram os consultores de Acessibilidade e inclusão: Aaron Rudner, Gildete Ferreira, Israel Costa, Regina Cohen, Sâmella Brito, Suzana Dalet e a coordenadora Márcia Adorno. Foi a oportunidade de apresentar as atividades do CNO para a Acessibilidade, relatadas com grande emoção por todos, ressaltando as etapas do trabalho. Como convidados, estiveram a secretária Georgette Vidor, da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro, Cinthya Freitas, presidente do Conselho Municipal – COMDEF, Marcio Rodrigues, da Superintendência de Políticas para as Pessoas com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro, e Ediclea Mascarenhas, representante do Conselho Estadual de Políticas – CEPDE, que abordaram a importância da Acessibilidade e do diálogo com a organização dos próximos eventos, como Copa da FIFA 2014 e Jogos Olímpicos e Paralímpicos – Rio 2016. A gerente de Legado e Sustentabilidade dos Jogos, Tania Braga, mostrou a preparação para o megaevento com Acessibilidade e manifestou a importância de conhecer o legado da Rio+20. Como convidado especial, Magnus Olafsson, diretor de Conferências e Documentos da ONU, apresentou a sua percepção sobre o trabalho empreendido pelo CNO para a Acessibilidade. Olafsson afirmou que a Rio+20 ensinou oito lições à ONU com a implementação da Acessibilidade na Rio+20. O “Modelo Brasileiro de Governança da Acessibilidade” servirá de parâmetro para a estruturação de uma unidade de realizações com Acessibilidade na ONU. Elogiou a impecável acessibilidade física e ressaltou que a legenda em tempo real e língua de sinais deverão estar nas Assembleias Gerais da ONU e eventos com assunto definido. O seminário foi concluído com a certeza de que a Rio+20 passa para a história das conferências da ONU como o início da Acessibilidade.

No dia 17 de junho, no auditório Multiuso do Parque dos Atletas aconteceu o Fórum “Promovendo o Desenvolvimento Inclusivo para um Futuro Sustentável”, com o objetivo de inserir questões relativas aos direitos das pessoas com deficiência nas discussões sobre estratégias e políticas públicas para o desenvolvimento sustentável. O evento foi organizado pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, pela Rede Latino Americana de Organizações Não Governamentais de Pessoas com Deficiência e suas Famílias – RIADIS, a Secretaria da Convenção/DESA/ONU e apoio do CNO Rio+20. A moderação coube a Cid Torquato, de relações institucionais da Secretaria. Fórum amplo, que apresentou diferentes enfoques trazidos por lideranças e especialistas. A Dra. Izabel Maior, consultora do CNO e docente da UFRJ, abordou o tema da Acessibilidade na Rio+20 como legado, assim entendido pela ONU. Expôs aspectos resolvidos e desafios a serem superados na prestação de serviços e pessoal capacitado em Acessibilidade na comunicação e informação, principalmente. Entre importantes panelistas, destaca-se a fala do subsecretário Marco Pellegrini, que cobrou atuação mais incisiva da sociedade e dos órgãos de governo para reforçar o tema deficiência na agenda global; de Wanderley de Assis, presidente do Conselho Estadual, que abordou a função dos colegiados de direitos; de Regina Atalla, presidente da RIADIS, que apresentou a situação e diagnóstico da rede internacional e as estratégias para inserir o recorte de deficiência nos documentos da ONU; a de Arnaud Peral, do PNUD, que constatou ser indevida a falta de abertura para as questões sobre pessoas com deficiência e desenvolvimento sustentável e frisou que o seminário cabia no programa do Riocentro. A deputada Mara Gabrilli expôs avanços de Acessibilidade na Câmara dos Deputados e a secretária Linamara Battistella apresentou a proposta de São Paulo para a criação de órgãos de governo para a política de direitos do segmento e a criação de uma agência específica para tratar do tema deficiência no Sistema ONU. Ao final, a Secretaria de Estado de São Paulo ofereceu um coquetel para celebrar Acessibilidade na Conferência Rio+20.

Conclusões

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20, realizada de 13 a 22 de junho de 2012, apresentou os recursos de Acessibilidade essenciais à presença, à compreensão e à intervenção das pessoas com deficiência no debate em bases iguais com as demais pessoas. A Rio+20 já foi reconhecida pela ONU como o divisor entre o que existiu antes e a Rio+20 que foi a conferência com Acessibilidade, trazendo um novo modelo de governança da Acessibilidade a ser seguido pela ONU.

A Rio+20 não foi uma conferência específica para os direitos das pessoas com deficiência, daí a importância que teve ao prover os recursos de Acessibilidade e dar visibilidade à participação de todas as pessoas no debate do Desenvolvimento Sustentável. Com o empoderamento do segmento no tocante ao tema da conferência espera-se que nas próximas decisões internacionais, tais como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio pós-2015, estejam inseridas as especificidades de cerca de um bilhão de pessoas com deficiência no mundo (15% da população).

A Conferência das Nações Unidas Rio+20 representa um novo paradigma em Acessibilidade nos grandes eventos mundiais. Essa determinação veio com o entusiasmo do secretário nacional, ministro Laudemar Aguiar e sintonia com a coordenadora de Acessibilidade e Inclusão, conselheira Márcia Adorno Cavalcanti Ramos. Participaram com grande profissionalismo os servidores: Clara Solon, Maitê Schmitz, Tiago Santos, Vinicius Barbosa da Silva, todos do Itamaraty.

É indispensável reconhecer que o patamar de qualidade alcançado na Rio+20 se deve à atuação dos consultores, especialistas nas várias áreas de Acessibilidade para as pessoas com deficiência, que agiram de maneira integrada e harmoniosa: Aaron Rudner – intérprete internacional e professor de línguas de sinais, Cristiana Nobre – voluntariado em grandes eventos, Gildete Ferreira – capacitação dos voluntários em Acessibilidade, Israel Costa – recursos digitais com Acessibilidade e homologação dos produtos, Raphael Fagundes Pinho – assessor em capacitação, Regina Cohen – arquiteta renomada, coordenadora de Acessibilidade e Desenho universal, Sâmella Brito – arquiteta que atuou intersetorialmente em favor a Acessibilidade física, Sonia Baleotti – especialista em voluntariado, Suzana Dalet – supervisora sênior de grandes eventos, responsável pelos editais e seleção dos serviços de Acessibilidade e Tatianne Ferreira – especializada em logística de eventos para as pessoas com deficiência.

Quanto a minha participação como consultora sênior do CNO Rio+20, tenho a certeza que demos o melhor de nós para a participação das pessoas com deficiência agora e no futuro no debate das agendas internacionais. Foi uma grande satisfação viver a Rio+20 em equipe e sem barreiras.

Basta sonhar, acreditar e trabalhar sempre mais, que a Acessibilidade estará naturalmente inserida no Futuro Que Queremos!

*A autora é docente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Mestre em Medicina Física e Reabilitação pela UFRJ. Consultora de acessibilidade do Comitê Nacional de Organização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20 e do Programa SENAC de Acessibilidade. Ex-titular da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, anteriormente CORDE, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, de 2002 a 2010. Representou o Brasil na ONU na elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e liderou o processo de sua ratificação. Em sua gestão, foram elaborados os Decretos da Acessibilidade, do Cão-Guia e da pensão vitalícia das pessoas atingidas pela hanseníase, a Agenda Social de Inclusão das Pessoas com Deficiência e o projeto da História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Recebeu em 2010 o inédito prêmio da Organização dos Estados Americanos – OEA, em “Reconhecimento por seu trabalho para um Continente Inclusivo”.

Fonte: Inclusive